segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Expresso da Loucura

O nome do bairro onde eu moro é Nonoai. Nunca pensei no que isso quer dizer, deve ser alguma coisa em Tupi. Talvez seja o nome que os nativos davam para o cu, porque é isso que meu bairro é. Um cu. Pior do que morar no bairro é morar na Avenida com o mesmo nome. Tem movimento pra caramba, porque é um dos caminhos pra se chegar da Zona Sul no Centro. E passa ônibus, passa lotação, passa táxi, passa viatura da brigada, passa carro, passa moto, todos fazendo um barulho do caralho no ouvido da gente. Mas eu moro na Avenida Nonoai desde que nasci, e não imagino como seja morar em outro lugar. Não sei se tem alguma relação com o barulho dos carros o tempo inteiro, mas sempre fui quieto, sempre preferi ficar em silêncio. Nunca tive muitos amigos no bairro. Os poucos que tinha não valiam sair de casa pra uma visita, um futebol, uma brincadeira. Gostava mesmo de ficar pelo meu quarto, ler, ouvir música, ver TV, olhar aqueles milhares de carros passando pela minha janela. Uma das coisas boas de ver da janela era um maluquinho que corria pela rua no meio dos carros. O cara corria até não sei onde e voltava, sempre na mão certa, sempre respeitando os sinais e placas de trânsito, sempre num trote curto. Ele fazia a mesma coisa desde que eu era bem pequeno. Cresci, ele envelheceu e continuou fazendo a mesma coisa, e eu sempre vendo. Nunca fui de perguntar nada pra ninguém, mas um dia eu peguei um táxi na esquina de casa. Num destes pontos de táxi onde ficam sempre os mesmos carinhas – carinhas que sabem de tudo que acontece na vizinhança. No caminho, passamos pelo louquinho corredor. Falei pro motorista que eu via aquele sujeito correndo desde que eu era criança. Ele me explicou que o cara achava que era um ônibus, um motorista de ônibus, e que passava o dia todo indo e voltando da Praça Guia Lopes até o Centro. Ri na hora, mas fiquei pensando no coitado o resto do dia. Quer dizer, eu achava que ele era um coitado, porque, pra ele, tava tudo bem. Poderia fazer um monte de piadas sobre ele, do tipo será que dorme ou só estaciona e desliga o motor, bebe água ou gasolina, mas não achei graça em nada. Comecei a reparar ainda mais nele, anotar os horários em que ele passava pela parada onde eu pegava o ônibus de verdade. Queria ajudar o sujeito de alguma forma. Um dia resolvi fazer um teste. Ele vinha naquela corrida pelo meio da rua e eu fiz o sinal de chamar o ônibus. Ele parou e ficou me olhando. Estendi uma nota de dez reais e ele me respondeu que não tinha troco. Fechou a porta e arrancou. O resto das pessoas na parada do ônibus ficou rindo. Eu fiquei com raiva deles. Filhos da puta, normais, se divertindo pra caralho com a doença dos outros. No outro dia, estava com o dinheiro da passagem certinho na mão. Quando ele apontou correndo, fiz sinal. O homem-ônibus parou e me encarou sem paciência. Ele lembrava de mim e disse que se eu não tivesse o dinheiro certo da passagem eu não devia ficar parando ele, que tinha horário e levava bronca do fiscal no Centro quando se atrasava nas viagens. Estendi o dinheiro certinho pra ele, que me mandou subir. Fiquei atrás e o segui, trotando, por umas três ou quatro paradas. Não podia ficar correndo pela rua atrás de um louco. Não que tivesse algum problema em alguém achar que eu também não era normal, mas por que ia chegar no trabalho suado e atrasado. Pedi pra descer e ele me recomendou que não conversasse com ele, porque sempre tinha algum fiscal que podia ver e isso dava a maior confusão depois. Me desculpei e desci. Quem estava na parada não entendeu, azar. Tinha conseguido fazer o que queria: dar uma grana para o sujeito. Se eu conseguisse andar duas ou três paradas com ele todos os dias, podia ajudar o coitado a comer um pão, tomar um refri, essas coisas. E foi isso que eu comecei a fazer. Ia pra parada do ônibus, fazia sinal pro meu amigo ônibus, pagava a passagem e descia uma ou duas paradas depois. Num dia em que ele estava mais tranquilo, me falou que seria muito melhor eu fazer o trajeto caminhando, que andar fazia bem pra saúde e que eu não devia gastar o dinheiro de uma passagem num trajeto que dava pra fazer caminhando. Agradeci o conselho, mas continuei andando com ele todos os dias em que não chovia. Quando chovia ele não me deixava entrar no ônibus de guarda-chuva aberto, pra não incomodar os outros passageiros, daí eu não insistia. Não podia ficar me molhando de graça só pra ajudá-lo. Até que um dia ele não passou pela parada. Era segunda, eu fui trabalhar e não o vi. Nem durante o resto da semana. Passei um tempão do sábado na janela do meu quarto, esperando o ônibus passar. Nada. Desci e fui até o ponto de táxi porque lá eles deviam saber o que tinha acontecido com o louquinho. Os motoristas que estavam ali não sabiam de nada e o sujeito que me explicou quem era o louco não estava lá. Voltei mais tarde e encontrei o cara que eu conhecia conversando com os outros taxistas. Taxistas carregam muita gente todos os dias, e raramente lembram de um passageiro. O cara não lembrava de mim, é claro. Não tinha problema, ele não precisava me conhecer pra dizer o que sabia: o louquinho estava hospitalizado, tinha sofrido um acidente num cruzamento. Ele tentou passar no sinal amarelo e um carro arrancou muito rápido e o atropelou. Bateu a cabeça no asfalto, tava mal, parecia que ia morrer. Como a vida não costuma perdoar os fudidos, ele morreu mesmo. Fiquei mais triste com isso do que quando minha vó morreu, velhinha e cansada, com quase noventa anos. Aquele cara era ainda novo, forte e, pra completar, eu tinha visto ele muito mais vezes do que a vó durante a minha vida toda. Comecei a pensar que o bairro, que já era sem graça, ia ficar pior ainda. Perdemos uma linha de ônibus. Quem é que ia fazer a linha Guia Lopes-Centro, o Expresso da Loucura, o único ônibus que passava pela Nonoai e não estava lotado? Quando o sábado chegou, caminhei da Guia Lopes até o Centro e voltei. Era uma puxada forte. No domingo, fiz o trajeto duas vezes. Quando fui dormir, minhas pernas doíam. Na segunda eu acordei mais cedo que de hábito, tomei meu café e me despedi dos meus pais. Eles se despediram de mim como se eu fosse chegar de volta à noite. Nunca voltei. Agora, eu tenho uma linha de ônibus pra cuidar.

Bingo!

De novo? Não. Puta que o pariu, de novo? Faltando três números pra mim. Sempre faltam três, dois ou um número. Olha lá, a cadela tá toda feliz com esses mil reais que ganhou. Nunca vi essa mulher aqui. Garanto que é a primeira vez que vem jogar. Sorte de principiante. Que nem a que eu tive quando comecei a jogar. Tava numa merda, desempregado fazia meses, não tinha dinheiro nem pra comer. Comecei a jogar bingo pra comer, não me meti nesse buraco pra brincar com as amigas que nem essa puta. Peguei uma grana que a minha mulher me deu pra pagar o cartão de crédito, separei a parcela mínima e entrei no salão bem na hora do almoço. No começo não me preocupei em jogar. Fiquei no buffet de salgadinhos, porque fazia mais de uma semana que eu só jantava, pra economizar a comida da casa e não obrigar a minha mulher a gastar toda a grana dela só por que eu estava numa merda. Guardando grana pra pagar o mínimo do cartão, se eu não ganhasse nada, pelo menos o rolo ficava pra próxima fatura. Tinha quase um mês pra inventar uma desculpa. Mas depois de comer, eu ganhei trezentos contos. Não era muito, mas eu parei e fui direto para o banco pagar todo o valor do cartão de crédito. Acho que vou ficar pra mais uma rodada e depois vou pra casa porque já é tarde. Tomara que comece de uma vez pra eu ganhar uma graninha. Agora eu tô sentindo a sorte. Depois de pagar o cartão, peguei cem reais dos trezentos que ganhei e comprei umas coisas pra casa no supermercado. Minha mulher ficou desconfiada, mas eu disse que era uma grana de um sujeito que me devia há tempos e ela acreditou. No outro dia eu acordei com uma coceira na mão. Sentia que se voltasse no bingo eu ia me dar bem. Sem contar que eu podia almoçar de graça. Vinte e três. Não gosto quando o primeiro número não sai na minha cartela. Parelha de quatro e eu sem quarenta e quatro na cartela. Voltei, passei a tarde jogando e o máximo que eu consegui foi perder os cem contos que tinha guardado pra jogar. Desisti antes de tentar a sorte de novo. Não era meu dia. Hoje também não é. O primeiro número que saiu da minha cartela foi o sétimo que o cara cantou. Vou peder mais uma. Voltei no outro dia e, logo de cara, ganhei quinhentos reais. Começou uma fase de sorte, porque eu ainda estava no salão quando me ligaram de uma empresa onde eu tinha deixado o currículo. Queriam me entrevistar no outro dia. A sorte muda de uma hora pra outra mesmo. Os últimos números encheram a minha cartela muito rápido. Faltam oito rodadas pro final e eu preciso de mais três números. De novo, três. Tomara que eu não acabe como na rodada anterior. Quando voltei a trabalhar, larguei o bingo. Ficava trabalhando direto na hora do almoço e à noite. Saía do trabalho para casa, pra ficar com a minha mulher, que agora sentia orgulho de mim. Ela não exigia quase nada, ficava feliz em me ver trabalhando e ganhando direitinho. De vez em quando sentia vontade de jogar de novo, mas não tinha tempo. Agora só faltam dois números. Dou uma olhada no salão pra ver se tem alguém tão excitado quanto eu. Vejo que uma mesa está agitada. Deve ser um idiota com três números pra fechar a cartela achando que vai se dar bem. Vai se dar bem o caralho, agora é minha vez de ganhar. Vou gritar bingo feito um tenor pra foder com a vida dele quando eu ganhar. O idiota vai ver que não é assim que se joga. O trabalho na empresa entrou nos eixos e eu comecei a ter mais tempo livre. Um dia saí no horário e parei no bingo. Imaginei que se eu tinha conseguido uma grana numa maré de azar, com um emprego e dinheiro no bolso ia chamar muito mais. Que nada. Deixei um dinheirão no bingo e ainda me incomodei com a minha mulher em casa. Ela não acreditou que eu tinha ficado trabalhando porque sentiu cheiro de cigarro e bebida. Achou que eu andava com outra mulher. Um número e três rodadas para o final. Fazia muito tempo que eu não tinha tanta chance de ganhar. Perdi na saída do trabalho e, no dia seguinte, aproveitei a hora do almoço pra tentar recuperar. Perdi mais dinheiro e perdi a hora também. Cheguei uma hora e meia atrasado e tomei uma bronca do meu supervisor. Inventei que tinha furado o pneu do carro, mas ele não acreditou. Algum dos meus colegas deve ter dito que eu ia jogar bingo. Trabalhei mal naquela tarde. Tinha que voltar no bingo e recuperar o meu dinheiro. Voltei e perdi. E continuei voltando e perdendo. Mas dessa vez eu vou ganhar. Na última rodada eu vou ganhar o maior prêmio da noite. Cinco mil. Cinco mil não pagam as dívidas. Cinco mil não recuperam a minha mulher, que me deixou quando descobriu que eu tinha perdido o emprego porque faltei oito dias pra jogar. Cinco mil não servem pra mais nada. Só pra eu ser o grande ganhador da noite. Pra esse bando de filhos da puta me respeitarem. Pra eles terem certeza de que eu sou o rei dessa porra. Quando o supervisor me chamou na sala dele, eu já sabia que ia pra rua. Mas ele me aliviou. Sabia que eu estava com problemas e deu um jeito de eu receber a indenização. Eu até disse pra minha mulher que tinha sido demitido corte de gastos. Mas ela só acreditou até o dia em que ela me seguiu e, em vez de me ver entrar numa empresa pra fazer uma entrevista, viu seu marido entrando no bingo. Já tinha torrado toda a indenização. Tentei dizer que eu só ia no bingo pela comida, mas ela não acreditou. Ela me expulsou de casa e eu tive que pedir pra morar uns tempos com o meu irmão. Tá na hora de ganhar. Tá na hora da vida me devolver um pouquinho do que eu perdi. Meu irmão entendeu que eu estava viciado, quis que eu fosse para um grupo de apoio. Fui embora da casa dele, aluguei uma peça na casa de uma casal de velhos. Não conseguia mais viver sem me enfiar no bingo. Adrenalina. Muita adrenalina. Perder dinheiro, ganhar dinheiro. Não preciso de bebida, não preciso de nenhuma outra droga. Se não jogar, não acordo, não como, não durmo. Se o preço disso é vinte mil, ok. Se for cem, eu dou um jeito de bancar. Minha ex-mulher disse que vai vender o apartamento e dividir a grana. Daí eu posso pagar tudo o que eu devo e continuar jogando. E quando eu ganhar cinco mil de novo, vai ser só pra continuar jogando. Puta que o pariu. Acumulou o grande prêmio de novo.

Júnior

Todo mundo lembra de coisas que não viu. Copas do Mundo que o Brasil ganhou e perdeu, incêndios, bomba atômica, essas coisas. E tem aquelas histórias de família, quando a gente existia ou não. De tanto ouvir, a gente até acaba vendo. Eu acho que de tudo que eu lembro na vida, a imagem que não sai da minha cabeça é a do meu irmão, o Júnior. Ele tinha três anos quando eu nasci. Faz tempo isso. O Júnior era lindo. Tinha o cabelo crespinho e bem preto, o cabelo que eu queria ter. Mas o meu cabelo é liso, muito liso. Se eu pudesse ser alguém, eu queria ser o Júnior. Quando eu nasci ele ficou diferente. Coisa do tempo em que a gente era pequeno e os pais não sabiam como tratar. O Júnior ficou agitado, vivia aprontando. Começou a fazer coisas chatas. Vivia subindo nos móveis, derrubando coisas. Isso é o que me contaram, porque eu era muito pequeno pra lembrar. Acho que o Júnior não aguentou um bebê na casa em que ele era o bebê. De dia ele aprontava, à noite virava um bebê também. A mãe e o pai até que se esforçavam pra dividir a atenção. O pai deixou de jogar bola nas segundas e de ver os jogos do colorado. Tudo pra dar mais atenção ao Júnior. O pai eu não vejo há tempos, desde que ele e a mãe se separaram. Mas a mãe vive dizendo que eu aprendi a dividir muito cedo, ao contrário do Júnior. Eu sei que, à noite, ele não queria mais dormir no quarto dele. Chorava muito e acabava ficando na cama com o pai e a mãe. Eu dormia no meu berço. Se eu chorasse durante a noite, o Júnior chorava também. Quando a mãe me dava a mamadeira, ele lutava com o pobre pai na sala. Consigo imaginar a cena: o pai cansado e o Júnior fazendo a maior bagunça, feliz da vida. Depois ele deitava no meio dos meus pais, beijava e abraçava os dois e dormia como um anjo. Era impossível não amá-lo muito. Por essas coisas, o pai e mãe nunca se importaram com as coisas ruins que ele fazia. As boas eram tão boas que compensavam tudo. E os dias iam passando, e os meses. Eu ia crescendo, precisando de cada vez menos atenção. Mas o Júnior continuava diferente mesmo assim. Um dia ele conseguiu trancar a porta do quarto. A mãe quis entrar e não conseguiu. Chamou e ele não respondeu. Ela ficou tão nervosa que não encontrou a chave reserva. Então chamou o zelador, que deu um tranco com o ombro na porta e ela abriu. Arrancou o marco, mas abriu. Quando eles entraram, o Júnior estava deitado no tapete olhando um livro. Era tão lindo que a mãe nem brigou com ele: só pediu pra não trancar a porta nunca mais. Quando eu tinha uns sete meses o Júnior fez a maior de todas as bobagens. Era verão, um dia muito quente. Todos os ventiladores ligados, todas as janelas abertas e o calor insuportável do mesmo jeito. A mãe tava fazendo o almoço. Eu tava na sala, no chiqueirinho, com a TV ligada pra me fazer companhia. O pai tava trabalhando, é claro. E o Júnior ficou brincando no quarto dele. A mãe chamou pro almoço e ele não respondeu. Foi até o quarto e viu que a porta tinha sido trancada de novo. Chamou e ele não respondeu, igualzinho à outra vez. Ela nem se preocupou: pegou a chave reserva no quarto e abriu a porta. Mas ele tinha se escondido. Ela olhou embaixo da cama e no roupeiro. Ele não tava. Daí ela olhou atrás de um cesto e ele também não tava. Ela não acreditou quando olhou pela janela e o Júnior tava no pátio do prédio, deitado, com uma mancha de sangue perto da cabeça. Ela nunca esqueceu do que viu. E eu, que não vi, também não consigo esquecer.

Adultos

Meu pai e minha mãe são adultos. Eu não entendo direito as coisas que eles fazem. Agora tá dando a maior confusão aqui em casa por causa dessas coisas que eles fazem e eu não entendo. A mãe tá gritando, o pai tá telefonando pro médico, a maior confusão. Começou quando eu achei um cachorrinho na rua. Bom, isso faz tempo. Mas daí, quando cheguei em casa, deu a maior briga: a mãe ficou muito braba, me deu um xingão, disse que não podia gastar dinheiro pra criar um cachorrinho, que não tinha espaço pra ele. Eu pedi pra ficar com ele, disse que ia levar pra passear, dava banho e que eu não me importava que ele dormisse na minha cama. A mãe não deixou nem assim. Então eu fugi de casa e fui me esconder na casa do meu amigo Paulinho com o cachorrinho junto. Quando o pai chegou do trabalho, a mãe disse pra ele o que tinha acontecido e ele ficou muito brabo. Não sei como ele descobriu que eu tava escondido na casa do Paulinho com o cachorrinho e foi lá nos buscar. Daí ele pegou o carro, o cachorrinho e eu e saiu andando. Quando a gente tava bem longe de casa, ele parou o carro e me disse - deixa esse cachorro de merda aí! Eu expliquei tudinho pra ele. Deixa, pai, eu disse, vou cuidar dele bem direitinho, divido a minha comida com ele, dou banho e não me importo que ele durma comigo. Mas o pai disse - eu não quero mais um pra dar trabalho em casa. Tive que largar o cachorrinho naquele lugar longe e nunca mais vi ele. Eu chorei antes de dormir naquela noite. E no outro dia também. Até que o Paulinho apareceu lá em casa. Ele me contou que a mãe dele tinha ligado pra minha mãe e dedado que eu tava lá na casa dele. Por isso que o pai me encontrou. Disse mais - a essa hora aquele cachorrinho já deve até ter morrido atropelado, e eu comecei a chorar de novo. O que eu tinha entendido dessa confusão é que ninguém mais podia morar lá em casa porque ia dar incomodação e despesa para os meus pais. Passou um tempo e a mãe apareceu toda feliz em casa. Ela gritava - Marquinhos, a mamãe tá esperando um nenezinho! Mas a senhora não disse que não tinha dinheiro nem espaço pra criar um cachorrinho, eu perguntei, como é que vai ter um nenê? Isso é diferente, a mãe me respondeu. Daí ela começou a ligar pra um monte de gente. Primeiro para o pai, que ficou feliz. Depois ela ligou para as minhas duas vós, falou com as minhas tias, meus tios, os tios dela e do pai, pras mulheres que trabalham com ela. Ela ainda foi nos apartamentos dos vizinhos contar que estava esperando um nenê. Naquele dia o pai até chegou em casa mais cedo e trouxe roupinhas de nenê e um carrinho bem legal pra mim. Daí eu perguntei - pai, agora que a gente tá com dinheiro e espaço, a mãe não podia esperar um cachorrinho em vez de um nenê? Ele riu e disse que era diferente, que nem a mãe tinha dito, mas eu continuava sem entender por que era diferente. Quer dizer, até sabia, porque um cachorrinho é muito mais legal que um nenê. Mas já que o pai e a mãe preferiam um nenê e eles mandavam em mim, eu tinha que aceitar um nenê. Primeiro a mãe não tinha barriga nenhuma, mas ficava enjoada e vomitava o tempo inteiro - mãe, você vai vomitar o nenê hoje ou ainda vai demorar pra ele nascer? - Marquinhos, a gente não vomita um nenê- a mãe me disse. E não vomita mesmo, porque de um dia pro outro ela parou de vomitar e a barriga dela começou a crescer. Todo dia a barriga dela crescia e eu fiquei com medo que fosse explodir. Perguntei pra ela se era assim que os nenês nasciam, quando a barriga da mãe explodia, e como é que fazia pra consertar a barriga, mas ela disse que também não era assim. E enquanto a barriga da mãe crescia, o pai ia mudando tudo no meu quarto. Botou um bercinho, pintou a parede, até riscou a parede - pai, o que que você riscou na parede? - é o nome da sua irmãzinha, meu filho: Vanessa - mas pai, como é que o senhor sabe que é uma irmãzinha se o nenê nem saiu da barriga da mãe, eu perguntei e o pai me mandou brincar na sala porque ele não tava com paciência de explicar - pai, se era pra vir uma irmãzinha, eu continuava preferindo um cachorrinho, eu disse e ele não deu a menor bola. Foi daí que eu entendi que o pai tinha mudado todo o meu quarto porque agora era a minha irmãzinha que ia dormir nele. Fiquei pensando se eu ia dormir naquele quarto de menina, mas não perguntei nada porque senão eu ia acabar levando umas palmadas. Ruim nessa história de irmãzinha é que ninguém me explicava nada. Até que um dia a mãe ganhou a nenê e eu ganhei um quebra-cabeças de 100 peças e uma barra de chocolate grandona e tive que ir dormir na casa da vó. A vó que me explicou que a mãe tinha que descansar, por isso que tinha que ficar no hospital e depois ela, o pai e a minha irmãzinha iam pra casa e eu ia também. Pedi pra ver a mãe e a nenê no hospital, mas a vó disse que eu era muito pequeno e que não iam me deixar entrar - deixa, vó, eu tô morrendo de saudade da mãe - e ela disse que depois de amanhã eu ia ver as duas. O tempo passou devagar até o pai ir me buscar na casa da vó e me levar pra casa - vamos comprar um presente pra tua irmã, ele disse - já sei, vamos comprar um cachorrinho pra ela, eu falei e ele ficou furioso - eu já disse que não quero uma merda de cachorro em casa, Marquinhos, ainda mais agora que a gente tem um nenê. Eu chorei baixinho e o pai disse que não precisava chorar, que ele não tava brabo comigo e a gente foi numa loja grande do Shopping e comprou um presente pra minha irmã e uma bola de futebol pra mim. Quando a gente chegou em casa eu corri pra abraçar a mãe, mas a Vanessa tava mamando e não deixou um espacinho pra eu abraçar a mãe e ir no colo dela - mãe, me dá colo? - deixa disso, Marquinhos, a tua irmãzinha tá mamando agora, e você já tá grande demais pra ficar no colo. Agora eu era grande pra ficar no colo, mas antes ela me pegava e me chamava de nenê - quando é que eu vou poder brincar com a Vanessa mãe, eu perguntei e ela me disse que eu não podia nem chegar perto do nenê porque ela ainda era muito pequena e eu podia acabar machucando a coitadinha. Daí eu esperei ela dormir e quando a mãe botou no berço eu joguei minha bola de futebol pra ver se ela sabia pegar. A bola caiu em cima da Vanessa e ela começou a chorar - calma nenezinho, eu disse, se você não quer jogar bola a gente não joga, mas ela continuou chorando e a mãe e o pai chegaram no quarto e viram que a culpa era minha. A mãe veio correndo, pegou a Vanessa no colo e o pai me pegou pela orelha e me deu umas palmadas. Eu sabia que ia acabar apanhando por causa da minha irmãzinha, e jurei que nunca mais ia brincar com ela. Na minha hora de dormir, a Vanessa já tava deitadinha, mas foi só eu começar a dormir que ela começou a fazer uns barulhinhos. Olhei e ela tinha vomitado. Fui até o quarto da mãe e do pai, mas eles tavam dormindo. Voltei pro quarto e ela tinha vomitado mais um pouquinho - porcalhona, eu disse, e dei um tapa nela. Daí a Vanessa começou a chorar e eu pensei que ia acabar levando mais umas palmadas do pai, então eu tapei a carinha dela com o travesseiro - calma, nenê, eu disse, eu não vou te bater mais, mas ela não entendeu e começou a mexer os bracinhos e as perninhas com força. Se ela não parasse, o pai e a mãe iam acordar e eu ia apanhar de novo. E eu fui ficando com brabo com a Vanessa, porque eu apanhava por causa dela, e não pude ficar com meu cachorrinho mas tinha que dividir meu quarto com ela, e porque quando eu quis comprar um cachorrinho pra ela o pai não deixou. Daí eu pensei que podia fazer com ela a mesma coisa que eu fazia com o Paulinho quando a gente brigava e comecei a apertar o pescocinho dela - fica quietinha que nem o Paulinho fica quando a gente briga, Vanessa, e eu paro de apertar o teu pescocinho. Mas ela era teimosa e não parou e eu tive que apertar o pescocinho dela cada vez mais forte. Até que ela entendeu e ficou quietinha. Agora eu podia dormir e a mãe e o pai iam ficar orgulhosos quando vissem que eu sabia cuidar da Vanessa direitinho. E amanhã mesmo eu ia pedir um cachorrinho de novo.

Doce

A gente vive de um jeito estranho. Eu mesmo, apesar das dificuldades que ando passando, tinha tudo pra me considerar um cara feliz. Pelo menos é o que todo mundo pensa. Também não estou aqui pra explicar o que me deixa triste. Não estudei pra tanto, é por isso que consulto um psicólogo. Mas nem sempre adianta. Daí ele me passou adiante pra um psiquiatra. Despejei todos os meus problemas pro sujeito, três décadas de problemas, e ele ficou me olhando com cara de pena (talvez eu esteja virando paranóico). Depois me deu um remédio pra depressão e outro pra ansiedade. O de ansiedade eu devia tomar antes de dormir e sempre que eu quisesse me machucar – eu tenho esse hábito. O de depressão é pra ficar tomando por um longo tempo. Saí do consultório me sentindo um pouco pior do que quando entrei, porque não queria ouvir um diagnóstico positivo a respeito da minha loucura. Meu vô era meio pirado de ser internado, os irmãos do meu pai eram alcóolatras, sei lá mais quantos malucos eu tenho na família. Só sei que não são poucos e eu, agora, tinha entrado pra galeria. Agora eu tinha uma receita azul e outra em duas vias. As duas pra malucos em potencial. Mas, meu amigo, quando se fica louco, nada melhor do que tomar os remédios. É mais seguro. Então, lá vou eu comprar meus remédios. Remédios que eu não tenho dinheiro pra pagar, mas que vou conseguir, porque eu posso estar fodido mas não me entrego. O cartão de crédito eu dava um jeito depois. Só queria deixar de ser maluco. O consultório era numa rua legal, dessas onde os prédios são enormes e os carros estacionados neles, idem. Os carros estacionados na rua também eram bem melhores e mais novos do que o meu. Eu estava caminhando até a esquina, onde eu sabia que tinha uma farmácia, numa rua movimentada o bastante pra não se ouvir o que acontece do outro lado. E daí veio o silêncio. O maldito silêncio que me fez ouvir o que eu não queria. Dois papeleiros com um carrinho cheio de lixo seco reviravam a lixeira de mais um prédio de gente bem de vida. Tiravam de lá as latas, as garrafas, os papéis, qualquer coisa que rendesse uns dez pilas no fim do dia. E eu ouvi, eu juro, porque o tempo parece até que parou naquela hora. Ouvi a felicidade suprema de um perguntando para o outro se ele queria comer um doce. Imagina quem não vai querer comer um doce quando não come nada? É claro que ele queria, queria muito. A barriga dele devia trovoar de fome. Então o que perguntou explicou “tá cheio de salada de fruta nesse pote”. Eu não parei. Eu não queria parar. Uma salada de frutas atirada no sol a não sei quanto tempo, pra alguém como eu e tu, deve ser um horror. Mas eles estavam felizes de verdade com ela. Com certeza, as crianças da casa dos ricos deviam ter jogado os restos dos seus pratos, com pedaços de fruta mastigados e cuspidos de volta naquele pote. Mas os dois papeleiros não tavam nem aí. Olhei não querendo ver, e eles comiam bem felizes. Fui até a farmácia e gastei uma quantia imoral nos remédios que vão me deixar melhor. Na volta, fui até a lata de lixo, levantei a tampa do pote e ainda tinha um monte de salada de frutas ali. Não parecia tão azeda. Não parecia tão ruim. Parecia até que, pra ser de graça, estava muito boa. Então eu fiz como os dois papeleiros. Com as mãos em concha, recolhi um pouco da salada de frutas. Experimentei. Comi mais e mais. Eu acho que também estava querendo um doce.