segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Doce

A gente vive de um jeito estranho. Eu mesmo, apesar das dificuldades que ando passando, tinha tudo pra me considerar um cara feliz. Pelo menos é o que todo mundo pensa. Também não estou aqui pra explicar o que me deixa triste. Não estudei pra tanto, é por isso que consulto um psicólogo. Mas nem sempre adianta. Daí ele me passou adiante pra um psiquiatra. Despejei todos os meus problemas pro sujeito, três décadas de problemas, e ele ficou me olhando com cara de pena (talvez eu esteja virando paranóico). Depois me deu um remédio pra depressão e outro pra ansiedade. O de ansiedade eu devia tomar antes de dormir e sempre que eu quisesse me machucar – eu tenho esse hábito. O de depressão é pra ficar tomando por um longo tempo. Saí do consultório me sentindo um pouco pior do que quando entrei, porque não queria ouvir um diagnóstico positivo a respeito da minha loucura. Meu vô era meio pirado de ser internado, os irmãos do meu pai eram alcóolatras, sei lá mais quantos malucos eu tenho na família. Só sei que não são poucos e eu, agora, tinha entrado pra galeria. Agora eu tinha uma receita azul e outra em duas vias. As duas pra malucos em potencial. Mas, meu amigo, quando se fica louco, nada melhor do que tomar os remédios. É mais seguro. Então, lá vou eu comprar meus remédios. Remédios que eu não tenho dinheiro pra pagar, mas que vou conseguir, porque eu posso estar fodido mas não me entrego. O cartão de crédito eu dava um jeito depois. Só queria deixar de ser maluco. O consultório era numa rua legal, dessas onde os prédios são enormes e os carros estacionados neles, idem. Os carros estacionados na rua também eram bem melhores e mais novos do que o meu. Eu estava caminhando até a esquina, onde eu sabia que tinha uma farmácia, numa rua movimentada o bastante pra não se ouvir o que acontece do outro lado. E daí veio o silêncio. O maldito silêncio que me fez ouvir o que eu não queria. Dois papeleiros com um carrinho cheio de lixo seco reviravam a lixeira de mais um prédio de gente bem de vida. Tiravam de lá as latas, as garrafas, os papéis, qualquer coisa que rendesse uns dez pilas no fim do dia. E eu ouvi, eu juro, porque o tempo parece até que parou naquela hora. Ouvi a felicidade suprema de um perguntando para o outro se ele queria comer um doce. Imagina quem não vai querer comer um doce quando não come nada? É claro que ele queria, queria muito. A barriga dele devia trovoar de fome. Então o que perguntou explicou “tá cheio de salada de fruta nesse pote”. Eu não parei. Eu não queria parar. Uma salada de frutas atirada no sol a não sei quanto tempo, pra alguém como eu e tu, deve ser um horror. Mas eles estavam felizes de verdade com ela. Com certeza, as crianças da casa dos ricos deviam ter jogado os restos dos seus pratos, com pedaços de fruta mastigados e cuspidos de volta naquele pote. Mas os dois papeleiros não tavam nem aí. Olhei não querendo ver, e eles comiam bem felizes. Fui até a farmácia e gastei uma quantia imoral nos remédios que vão me deixar melhor. Na volta, fui até a lata de lixo, levantei a tampa do pote e ainda tinha um monte de salada de frutas ali. Não parecia tão azeda. Não parecia tão ruim. Parecia até que, pra ser de graça, estava muito boa. Então eu fiz como os dois papeleiros. Com as mãos em concha, recolhi um pouco da salada de frutas. Experimentei. Comi mais e mais. Eu acho que também estava querendo um doce.

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