segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Eu escrevo o que eu quiser. Ou, sobre os lamentáveis incidentes me envolvendo entre os dias 31 de outubro e 3 de novembro de 2010.

Eis que, no dia 1º de novembro próximo passado, acesso minha conta pessoal do Gmail e, entre os milhares de spams de livrarias, noivas russas, comentários no Facebook e emails das listas malucas do Pintaúde, encontro 4 MDs do Twitter enviadas por @pepe_publi_pic, como tu pode ver aqui embaixo.








Tinha passado o fim de semana bem offline. Não tinha nem passado pelas redes sociais. Por mais que possa parecer um álibi furado, minha namorada, ou mesmo o Leo, amigo com quem divido uma casa, podem confirmar isso. Sei lá, namorada e amigo... Pode isso, Arnaldo?

Fui conferir os tweets do dia 31 e o que rolou foi bem engraçado, mas um pouco preocupante. Não chinelearia o Rafa Boher, e ele escreveu algumas coisas bem desagradáveis para mim – porque naquele momento ele acreditava que era eu.

Não conheço o senhor Alfredo Fedrizzi, não sigo o senhor Alfredo Fedrizzi no Twitter, nem me lembrava que ele existia, pra falar bem a verdade. De repente, o sujeito me aparece, todo valentão, convicto de que a pessoa que estava brigando com ele era eu e, não satisfeito, ameaçando com um advogado batendo na minha porta (que porta, cara-pálida?).

Tirei uma onda com o assunto. Troquei uma ideia sobre o assunto com meus bróders. A galera quer saber, deixa saber.

Nesse meio tempo, surge no Twitter um perfil: @esculachona, cuja bio é: severa oponente do Troll Duda Tajes.

Ora, façam-me o favor!

Troll? Eu?? Tão me acusando com base em @pepe_puli_pic ou @dudatajes?

Sei lá desde quando eu tô no Twitter. Meu primeiro amigo foi o Betão, @betoschmidt, e o segundão foi o Minwer @Minwer. Eu sei que eu tava trabalhando na Vossa, onde fiquei até fevereiro de 2008. Minha conta talvez seja de 2007.

Nesse tempo todo, eu sempre escrevi o que quis, do jeito que eu quis, sendo grosseiro, depressivo, antipático, cretino e tudo que sou na vida real, incluindo ser sincero e porra louca.

Não sigo pessoas que não gosto e me chateia receber retweets das pessoas que eu detesto. Às vezes me chateia tanto que tiro uma onda desses retweets, mas sempre com @dudatajes. Se o ofendido quiser deixar de ser meu amigo, ótimo. Provavelmente ele já não era.

Voltando ao fatídico dia 1º de novembro de 2010, alguém que já me detestava, ou alguém ligado a alguém que se sentiu ofendido pela confusão, tornou-se @esculachona. Lá pelo dia 3 este perfil passa a me seguir e, como faço com tudo que me segue, fui atrás. Mas tava no meio de um trampo e não fui conferir os twetts. Vi alguns retweets do @esculachao e não entendi direito, porque ele geralmente pega no pé imediatamente. Ainda brinquei com ele sobre isso. Só depois descobri que @esculachona acreditava também que eu era o próprio @esculachao, como você poderá ver a seguir.

Minha troca de ideias com ela (ou ele?) se resume ao dia 3, quando vi que ela escreveu para @pepe_publi_pic e para mim. Segue:

"Morreu? @PePe_PubliPic Cadê você? @dudatajes pra ti fica o exilio em SP, né? Burro que usa o nome pra trollar,so volta pro RS como GARI"

Não entendi muito bem a parte o que ela queria dizer, mas achei divertido. Respondi algo sobre minha incapacidade de passar num concurso para gari e sobre minha preferência pelo tráfico. A partir desse dia, nunca mais escreveu nada.

Fui ver os tweets e havia uma boa pesquisa sobre minha vida, incluindo Facebook e LinkedIn, mas sempre substituindo meu nome por @esculachao, ou usando os tweets dele, como se as gente fosse a mesma pessoa. Tente entender.

Para uma foto da minha namorada, ela troca meu nome.

“Se ela buscar por http://www.facebook.com/dudatajes conhecerá suas fotos Gays RT @esCulachao Depois ela quer que eu não me apaixone por ela.”

Cara, eu sou o primeiro a fazer piada com o meu jeito não muito másculo. E minha namorada conhece todas as minhas fotos, inclusive algumas bem mais gays do que as publicadas no Facebook. E todas elas são públicas e visíveis aqui. Fazem parte de um tema do site/comunidade/revista.

Mas vamos adiante, agora num tweet do @esculachao:

“Já pensou em ir pra baixa Augusta Duda? RT @EsCUlachao Pois é...um bom sexo cairia bem nesta tarde monótona de trabalho.”

Mas o que é que eu tenho com a vontade do outro cara de fazer sexo? Em tempo, o Baixo Augusta é um barato. Se @esculachona for homem, já deve ter andado por lá.

Bom, também desfez dos meus 20 anos de trabalho:

“Na passarela do desfile intelectual dos fracassados de hoje: http://br.linkedin.com/in/dudatajes”

Sei lá o que quis dizer com isto. Seria eu um intelectual? Não acredito. Seria uma alusão a eu me considerar um intelectual? Bom, essa é uma opinião equivocada. Quer me chamar de fracassado? Eu também acho. Infelizmente, alguém que tem 12 seguidores, incluindo o @esculachao e eu não deu nem visibilidade no meu perfil. Saco.

E por aí foi a loucura da pessoa. Tu pode ler tudo. É só vir aqui.

Fato: esta pessoa é fraca. Se quer me tirar do sério, precisa se esforçar, fazer um brain bastante extenso, apresentar para o Diretor de Criação, ter tudo reprovado, fazer mais até ficar realmente cruel, apresentar para o presidente da porra da empresa onde trabalha e daí postar. Ou tem que me pegar num dia muito envenenado, que é bem mais raro atualmente.

Conversei com o Rafa Boher sobre o incidente. Acho que ele acreditou que eu realmente não sou @pepe_publi_pic. Ou ele acha que eu sou cínico pra caralho e deixou por isso.

Para os cinco amigos do Rafa em São Paulo que disseram que eu era @pepe_publi_pic, o meu sonoro “tomar no cu, seus cuzões”.

Para o cara da Escala que ligou para sondar com o Beto Schmidt se eu era mesmo o @pepe_publi_pic, meu mais sincero desprezo. Quão baixo alguém pode chegar para bajular o chefe, amigão?

Obviamente, o senhor Alfredo Fedrizzi não se manifestou sobre o ocorrido. Afinal de contas, ele não me conhece e eu não o conheço, eu sou um operário da comunicação e ele é um empresário, ele tirou conclusões equivocadas a meu respeito e nunca vai descer do seu pedestal para pedir desculpas pela sua estupidez.

Senhor Alfredo Fedrizzi, tô cagando para as suas ameaças e para o emprego que o senhor poderia me dar um dia, se o resultado do meu fracasso profissional me levar de volta a Porto Alegre, capital do mundo. Se isso é motivo para processo, agora temos um post no meu blog, com links no twitter, facebook e linkedin. Como tudo que eu sempre escrevi, com o meu próprio nome.

Tanto ao Rafa quanto ao senhor Alfredo Fedrizzi, peço, com a educação que não me é peculiar: se algum de vocês é responsável direta ou indiretamente pelo perfil @esculachona, acho que é hora de apagar. Embora eu acredite que ela não vá escrever mais, tenho um filho de 13 anos que usa o twitter e não acho bonito que ela veja meu nome envolvido nessa baixaria, tão típica de pequenez portoalegrense, que ele ainda não conhece tão bem quanto nós.

Por fim, só não lamento completamente o ocorrido por ser o cara que tem razão nessa loucura.

De qualquer jeito, parabéns a todos os envolvidos.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Expresso da Loucura

O nome do bairro onde eu moro é Nonoai. Nunca pensei no que isso quer dizer, deve ser alguma coisa em Tupi. Talvez seja o nome que os nativos davam para o cu, porque é isso que meu bairro é. Um cu. Pior do que morar no bairro é morar na Avenida com o mesmo nome. Tem movimento pra caramba, porque é um dos caminhos pra se chegar da Zona Sul no Centro. E passa ônibus, passa lotação, passa táxi, passa viatura da brigada, passa carro, passa moto, todos fazendo um barulho do caralho no ouvido da gente. Mas eu moro na Avenida Nonoai desde que nasci, e não imagino como seja morar em outro lugar. Não sei se tem alguma relação com o barulho dos carros o tempo inteiro, mas sempre fui quieto, sempre preferi ficar em silêncio. Nunca tive muitos amigos no bairro. Os poucos que tinha não valiam sair de casa pra uma visita, um futebol, uma brincadeira. Gostava mesmo de ficar pelo meu quarto, ler, ouvir música, ver TV, olhar aqueles milhares de carros passando pela minha janela. Uma das coisas boas de ver da janela era um maluquinho que corria pela rua no meio dos carros. O cara corria até não sei onde e voltava, sempre na mão certa, sempre respeitando os sinais e placas de trânsito, sempre num trote curto. Ele fazia a mesma coisa desde que eu era bem pequeno. Cresci, ele envelheceu e continuou fazendo a mesma coisa, e eu sempre vendo. Nunca fui de perguntar nada pra ninguém, mas um dia eu peguei um táxi na esquina de casa. Num destes pontos de táxi onde ficam sempre os mesmos carinhas – carinhas que sabem de tudo que acontece na vizinhança. No caminho, passamos pelo louquinho corredor. Falei pro motorista que eu via aquele sujeito correndo desde que eu era criança. Ele me explicou que o cara achava que era um ônibus, um motorista de ônibus, e que passava o dia todo indo e voltando da Praça Guia Lopes até o Centro. Ri na hora, mas fiquei pensando no coitado o resto do dia. Quer dizer, eu achava que ele era um coitado, porque, pra ele, tava tudo bem. Poderia fazer um monte de piadas sobre ele, do tipo será que dorme ou só estaciona e desliga o motor, bebe água ou gasolina, mas não achei graça em nada. Comecei a reparar ainda mais nele, anotar os horários em que ele passava pela parada onde eu pegava o ônibus de verdade. Queria ajudar o sujeito de alguma forma. Um dia resolvi fazer um teste. Ele vinha naquela corrida pelo meio da rua e eu fiz o sinal de chamar o ônibus. Ele parou e ficou me olhando. Estendi uma nota de dez reais e ele me respondeu que não tinha troco. Fechou a porta e arrancou. O resto das pessoas na parada do ônibus ficou rindo. Eu fiquei com raiva deles. Filhos da puta, normais, se divertindo pra caralho com a doença dos outros. No outro dia, estava com o dinheiro da passagem certinho na mão. Quando ele apontou correndo, fiz sinal. O homem-ônibus parou e me encarou sem paciência. Ele lembrava de mim e disse que se eu não tivesse o dinheiro certo da passagem eu não devia ficar parando ele, que tinha horário e levava bronca do fiscal no Centro quando se atrasava nas viagens. Estendi o dinheiro certinho pra ele, que me mandou subir. Fiquei atrás e o segui, trotando, por umas três ou quatro paradas. Não podia ficar correndo pela rua atrás de um louco. Não que tivesse algum problema em alguém achar que eu também não era normal, mas por que ia chegar no trabalho suado e atrasado. Pedi pra descer e ele me recomendou que não conversasse com ele, porque sempre tinha algum fiscal que podia ver e isso dava a maior confusão depois. Me desculpei e desci. Quem estava na parada não entendeu, azar. Tinha conseguido fazer o que queria: dar uma grana para o sujeito. Se eu conseguisse andar duas ou três paradas com ele todos os dias, podia ajudar o coitado a comer um pão, tomar um refri, essas coisas. E foi isso que eu comecei a fazer. Ia pra parada do ônibus, fazia sinal pro meu amigo ônibus, pagava a passagem e descia uma ou duas paradas depois. Num dia em que ele estava mais tranquilo, me falou que seria muito melhor eu fazer o trajeto caminhando, que andar fazia bem pra saúde e que eu não devia gastar o dinheiro de uma passagem num trajeto que dava pra fazer caminhando. Agradeci o conselho, mas continuei andando com ele todos os dias em que não chovia. Quando chovia ele não me deixava entrar no ônibus de guarda-chuva aberto, pra não incomodar os outros passageiros, daí eu não insistia. Não podia ficar me molhando de graça só pra ajudá-lo. Até que um dia ele não passou pela parada. Era segunda, eu fui trabalhar e não o vi. Nem durante o resto da semana. Passei um tempão do sábado na janela do meu quarto, esperando o ônibus passar. Nada. Desci e fui até o ponto de táxi porque lá eles deviam saber o que tinha acontecido com o louquinho. Os motoristas que estavam ali não sabiam de nada e o sujeito que me explicou quem era o louco não estava lá. Voltei mais tarde e encontrei o cara que eu conhecia conversando com os outros taxistas. Taxistas carregam muita gente todos os dias, e raramente lembram de um passageiro. O cara não lembrava de mim, é claro. Não tinha problema, ele não precisava me conhecer pra dizer o que sabia: o louquinho estava hospitalizado, tinha sofrido um acidente num cruzamento. Ele tentou passar no sinal amarelo e um carro arrancou muito rápido e o atropelou. Bateu a cabeça no asfalto, tava mal, parecia que ia morrer. Como a vida não costuma perdoar os fudidos, ele morreu mesmo. Fiquei mais triste com isso do que quando minha vó morreu, velhinha e cansada, com quase noventa anos. Aquele cara era ainda novo, forte e, pra completar, eu tinha visto ele muito mais vezes do que a vó durante a minha vida toda. Comecei a pensar que o bairro, que já era sem graça, ia ficar pior ainda. Perdemos uma linha de ônibus. Quem é que ia fazer a linha Guia Lopes-Centro, o Expresso da Loucura, o único ônibus que passava pela Nonoai e não estava lotado? Quando o sábado chegou, caminhei da Guia Lopes até o Centro e voltei. Era uma puxada forte. No domingo, fiz o trajeto duas vezes. Quando fui dormir, minhas pernas doíam. Na segunda eu acordei mais cedo que de hábito, tomei meu café e me despedi dos meus pais. Eles se despediram de mim como se eu fosse chegar de volta à noite. Nunca voltei. Agora, eu tenho uma linha de ônibus pra cuidar.

Bingo!

De novo? Não. Puta que o pariu, de novo? Faltando três números pra mim. Sempre faltam três, dois ou um número. Olha lá, a cadela tá toda feliz com esses mil reais que ganhou. Nunca vi essa mulher aqui. Garanto que é a primeira vez que vem jogar. Sorte de principiante. Que nem a que eu tive quando comecei a jogar. Tava numa merda, desempregado fazia meses, não tinha dinheiro nem pra comer. Comecei a jogar bingo pra comer, não me meti nesse buraco pra brincar com as amigas que nem essa puta. Peguei uma grana que a minha mulher me deu pra pagar o cartão de crédito, separei a parcela mínima e entrei no salão bem na hora do almoço. No começo não me preocupei em jogar. Fiquei no buffet de salgadinhos, porque fazia mais de uma semana que eu só jantava, pra economizar a comida da casa e não obrigar a minha mulher a gastar toda a grana dela só por que eu estava numa merda. Guardando grana pra pagar o mínimo do cartão, se eu não ganhasse nada, pelo menos o rolo ficava pra próxima fatura. Tinha quase um mês pra inventar uma desculpa. Mas depois de comer, eu ganhei trezentos contos. Não era muito, mas eu parei e fui direto para o banco pagar todo o valor do cartão de crédito. Acho que vou ficar pra mais uma rodada e depois vou pra casa porque já é tarde. Tomara que comece de uma vez pra eu ganhar uma graninha. Agora eu tô sentindo a sorte. Depois de pagar o cartão, peguei cem reais dos trezentos que ganhei e comprei umas coisas pra casa no supermercado. Minha mulher ficou desconfiada, mas eu disse que era uma grana de um sujeito que me devia há tempos e ela acreditou. No outro dia eu acordei com uma coceira na mão. Sentia que se voltasse no bingo eu ia me dar bem. Sem contar que eu podia almoçar de graça. Vinte e três. Não gosto quando o primeiro número não sai na minha cartela. Parelha de quatro e eu sem quarenta e quatro na cartela. Voltei, passei a tarde jogando e o máximo que eu consegui foi perder os cem contos que tinha guardado pra jogar. Desisti antes de tentar a sorte de novo. Não era meu dia. Hoje também não é. O primeiro número que saiu da minha cartela foi o sétimo que o cara cantou. Vou peder mais uma. Voltei no outro dia e, logo de cara, ganhei quinhentos reais. Começou uma fase de sorte, porque eu ainda estava no salão quando me ligaram de uma empresa onde eu tinha deixado o currículo. Queriam me entrevistar no outro dia. A sorte muda de uma hora pra outra mesmo. Os últimos números encheram a minha cartela muito rápido. Faltam oito rodadas pro final e eu preciso de mais três números. De novo, três. Tomara que eu não acabe como na rodada anterior. Quando voltei a trabalhar, larguei o bingo. Ficava trabalhando direto na hora do almoço e à noite. Saía do trabalho para casa, pra ficar com a minha mulher, que agora sentia orgulho de mim. Ela não exigia quase nada, ficava feliz em me ver trabalhando e ganhando direitinho. De vez em quando sentia vontade de jogar de novo, mas não tinha tempo. Agora só faltam dois números. Dou uma olhada no salão pra ver se tem alguém tão excitado quanto eu. Vejo que uma mesa está agitada. Deve ser um idiota com três números pra fechar a cartela achando que vai se dar bem. Vai se dar bem o caralho, agora é minha vez de ganhar. Vou gritar bingo feito um tenor pra foder com a vida dele quando eu ganhar. O idiota vai ver que não é assim que se joga. O trabalho na empresa entrou nos eixos e eu comecei a ter mais tempo livre. Um dia saí no horário e parei no bingo. Imaginei que se eu tinha conseguido uma grana numa maré de azar, com um emprego e dinheiro no bolso ia chamar muito mais. Que nada. Deixei um dinheirão no bingo e ainda me incomodei com a minha mulher em casa. Ela não acreditou que eu tinha ficado trabalhando porque sentiu cheiro de cigarro e bebida. Achou que eu andava com outra mulher. Um número e três rodadas para o final. Fazia muito tempo que eu não tinha tanta chance de ganhar. Perdi na saída do trabalho e, no dia seguinte, aproveitei a hora do almoço pra tentar recuperar. Perdi mais dinheiro e perdi a hora também. Cheguei uma hora e meia atrasado e tomei uma bronca do meu supervisor. Inventei que tinha furado o pneu do carro, mas ele não acreditou. Algum dos meus colegas deve ter dito que eu ia jogar bingo. Trabalhei mal naquela tarde. Tinha que voltar no bingo e recuperar o meu dinheiro. Voltei e perdi. E continuei voltando e perdendo. Mas dessa vez eu vou ganhar. Na última rodada eu vou ganhar o maior prêmio da noite. Cinco mil. Cinco mil não pagam as dívidas. Cinco mil não recuperam a minha mulher, que me deixou quando descobriu que eu tinha perdido o emprego porque faltei oito dias pra jogar. Cinco mil não servem pra mais nada. Só pra eu ser o grande ganhador da noite. Pra esse bando de filhos da puta me respeitarem. Pra eles terem certeza de que eu sou o rei dessa porra. Quando o supervisor me chamou na sala dele, eu já sabia que ia pra rua. Mas ele me aliviou. Sabia que eu estava com problemas e deu um jeito de eu receber a indenização. Eu até disse pra minha mulher que tinha sido demitido corte de gastos. Mas ela só acreditou até o dia em que ela me seguiu e, em vez de me ver entrar numa empresa pra fazer uma entrevista, viu seu marido entrando no bingo. Já tinha torrado toda a indenização. Tentei dizer que eu só ia no bingo pela comida, mas ela não acreditou. Ela me expulsou de casa e eu tive que pedir pra morar uns tempos com o meu irmão. Tá na hora de ganhar. Tá na hora da vida me devolver um pouquinho do que eu perdi. Meu irmão entendeu que eu estava viciado, quis que eu fosse para um grupo de apoio. Fui embora da casa dele, aluguei uma peça na casa de uma casal de velhos. Não conseguia mais viver sem me enfiar no bingo. Adrenalina. Muita adrenalina. Perder dinheiro, ganhar dinheiro. Não preciso de bebida, não preciso de nenhuma outra droga. Se não jogar, não acordo, não como, não durmo. Se o preço disso é vinte mil, ok. Se for cem, eu dou um jeito de bancar. Minha ex-mulher disse que vai vender o apartamento e dividir a grana. Daí eu posso pagar tudo o que eu devo e continuar jogando. E quando eu ganhar cinco mil de novo, vai ser só pra continuar jogando. Puta que o pariu. Acumulou o grande prêmio de novo.

Júnior

Todo mundo lembra de coisas que não viu. Copas do Mundo que o Brasil ganhou e perdeu, incêndios, bomba atômica, essas coisas. E tem aquelas histórias de família, quando a gente existia ou não. De tanto ouvir, a gente até acaba vendo. Eu acho que de tudo que eu lembro na vida, a imagem que não sai da minha cabeça é a do meu irmão, o Júnior. Ele tinha três anos quando eu nasci. Faz tempo isso. O Júnior era lindo. Tinha o cabelo crespinho e bem preto, o cabelo que eu queria ter. Mas o meu cabelo é liso, muito liso. Se eu pudesse ser alguém, eu queria ser o Júnior. Quando eu nasci ele ficou diferente. Coisa do tempo em que a gente era pequeno e os pais não sabiam como tratar. O Júnior ficou agitado, vivia aprontando. Começou a fazer coisas chatas. Vivia subindo nos móveis, derrubando coisas. Isso é o que me contaram, porque eu era muito pequeno pra lembrar. Acho que o Júnior não aguentou um bebê na casa em que ele era o bebê. De dia ele aprontava, à noite virava um bebê também. A mãe e o pai até que se esforçavam pra dividir a atenção. O pai deixou de jogar bola nas segundas e de ver os jogos do colorado. Tudo pra dar mais atenção ao Júnior. O pai eu não vejo há tempos, desde que ele e a mãe se separaram. Mas a mãe vive dizendo que eu aprendi a dividir muito cedo, ao contrário do Júnior. Eu sei que, à noite, ele não queria mais dormir no quarto dele. Chorava muito e acabava ficando na cama com o pai e a mãe. Eu dormia no meu berço. Se eu chorasse durante a noite, o Júnior chorava também. Quando a mãe me dava a mamadeira, ele lutava com o pobre pai na sala. Consigo imaginar a cena: o pai cansado e o Júnior fazendo a maior bagunça, feliz da vida. Depois ele deitava no meio dos meus pais, beijava e abraçava os dois e dormia como um anjo. Era impossível não amá-lo muito. Por essas coisas, o pai e mãe nunca se importaram com as coisas ruins que ele fazia. As boas eram tão boas que compensavam tudo. E os dias iam passando, e os meses. Eu ia crescendo, precisando de cada vez menos atenção. Mas o Júnior continuava diferente mesmo assim. Um dia ele conseguiu trancar a porta do quarto. A mãe quis entrar e não conseguiu. Chamou e ele não respondeu. Ela ficou tão nervosa que não encontrou a chave reserva. Então chamou o zelador, que deu um tranco com o ombro na porta e ela abriu. Arrancou o marco, mas abriu. Quando eles entraram, o Júnior estava deitado no tapete olhando um livro. Era tão lindo que a mãe nem brigou com ele: só pediu pra não trancar a porta nunca mais. Quando eu tinha uns sete meses o Júnior fez a maior de todas as bobagens. Era verão, um dia muito quente. Todos os ventiladores ligados, todas as janelas abertas e o calor insuportável do mesmo jeito. A mãe tava fazendo o almoço. Eu tava na sala, no chiqueirinho, com a TV ligada pra me fazer companhia. O pai tava trabalhando, é claro. E o Júnior ficou brincando no quarto dele. A mãe chamou pro almoço e ele não respondeu. Foi até o quarto e viu que a porta tinha sido trancada de novo. Chamou e ele não respondeu, igualzinho à outra vez. Ela nem se preocupou: pegou a chave reserva no quarto e abriu a porta. Mas ele tinha se escondido. Ela olhou embaixo da cama e no roupeiro. Ele não tava. Daí ela olhou atrás de um cesto e ele também não tava. Ela não acreditou quando olhou pela janela e o Júnior tava no pátio do prédio, deitado, com uma mancha de sangue perto da cabeça. Ela nunca esqueceu do que viu. E eu, que não vi, também não consigo esquecer.

Adultos

Meu pai e minha mãe são adultos. Eu não entendo direito as coisas que eles fazem. Agora tá dando a maior confusão aqui em casa por causa dessas coisas que eles fazem e eu não entendo. A mãe tá gritando, o pai tá telefonando pro médico, a maior confusão. Começou quando eu achei um cachorrinho na rua. Bom, isso faz tempo. Mas daí, quando cheguei em casa, deu a maior briga: a mãe ficou muito braba, me deu um xingão, disse que não podia gastar dinheiro pra criar um cachorrinho, que não tinha espaço pra ele. Eu pedi pra ficar com ele, disse que ia levar pra passear, dava banho e que eu não me importava que ele dormisse na minha cama. A mãe não deixou nem assim. Então eu fugi de casa e fui me esconder na casa do meu amigo Paulinho com o cachorrinho junto. Quando o pai chegou do trabalho, a mãe disse pra ele o que tinha acontecido e ele ficou muito brabo. Não sei como ele descobriu que eu tava escondido na casa do Paulinho com o cachorrinho e foi lá nos buscar. Daí ele pegou o carro, o cachorrinho e eu e saiu andando. Quando a gente tava bem longe de casa, ele parou o carro e me disse - deixa esse cachorro de merda aí! Eu expliquei tudinho pra ele. Deixa, pai, eu disse, vou cuidar dele bem direitinho, divido a minha comida com ele, dou banho e não me importo que ele durma comigo. Mas o pai disse - eu não quero mais um pra dar trabalho em casa. Tive que largar o cachorrinho naquele lugar longe e nunca mais vi ele. Eu chorei antes de dormir naquela noite. E no outro dia também. Até que o Paulinho apareceu lá em casa. Ele me contou que a mãe dele tinha ligado pra minha mãe e dedado que eu tava lá na casa dele. Por isso que o pai me encontrou. Disse mais - a essa hora aquele cachorrinho já deve até ter morrido atropelado, e eu comecei a chorar de novo. O que eu tinha entendido dessa confusão é que ninguém mais podia morar lá em casa porque ia dar incomodação e despesa para os meus pais. Passou um tempo e a mãe apareceu toda feliz em casa. Ela gritava - Marquinhos, a mamãe tá esperando um nenezinho! Mas a senhora não disse que não tinha dinheiro nem espaço pra criar um cachorrinho, eu perguntei, como é que vai ter um nenê? Isso é diferente, a mãe me respondeu. Daí ela começou a ligar pra um monte de gente. Primeiro para o pai, que ficou feliz. Depois ela ligou para as minhas duas vós, falou com as minhas tias, meus tios, os tios dela e do pai, pras mulheres que trabalham com ela. Ela ainda foi nos apartamentos dos vizinhos contar que estava esperando um nenê. Naquele dia o pai até chegou em casa mais cedo e trouxe roupinhas de nenê e um carrinho bem legal pra mim. Daí eu perguntei - pai, agora que a gente tá com dinheiro e espaço, a mãe não podia esperar um cachorrinho em vez de um nenê? Ele riu e disse que era diferente, que nem a mãe tinha dito, mas eu continuava sem entender por que era diferente. Quer dizer, até sabia, porque um cachorrinho é muito mais legal que um nenê. Mas já que o pai e a mãe preferiam um nenê e eles mandavam em mim, eu tinha que aceitar um nenê. Primeiro a mãe não tinha barriga nenhuma, mas ficava enjoada e vomitava o tempo inteiro - mãe, você vai vomitar o nenê hoje ou ainda vai demorar pra ele nascer? - Marquinhos, a gente não vomita um nenê- a mãe me disse. E não vomita mesmo, porque de um dia pro outro ela parou de vomitar e a barriga dela começou a crescer. Todo dia a barriga dela crescia e eu fiquei com medo que fosse explodir. Perguntei pra ela se era assim que os nenês nasciam, quando a barriga da mãe explodia, e como é que fazia pra consertar a barriga, mas ela disse que também não era assim. E enquanto a barriga da mãe crescia, o pai ia mudando tudo no meu quarto. Botou um bercinho, pintou a parede, até riscou a parede - pai, o que que você riscou na parede? - é o nome da sua irmãzinha, meu filho: Vanessa - mas pai, como é que o senhor sabe que é uma irmãzinha se o nenê nem saiu da barriga da mãe, eu perguntei e o pai me mandou brincar na sala porque ele não tava com paciência de explicar - pai, se era pra vir uma irmãzinha, eu continuava preferindo um cachorrinho, eu disse e ele não deu a menor bola. Foi daí que eu entendi que o pai tinha mudado todo o meu quarto porque agora era a minha irmãzinha que ia dormir nele. Fiquei pensando se eu ia dormir naquele quarto de menina, mas não perguntei nada porque senão eu ia acabar levando umas palmadas. Ruim nessa história de irmãzinha é que ninguém me explicava nada. Até que um dia a mãe ganhou a nenê e eu ganhei um quebra-cabeças de 100 peças e uma barra de chocolate grandona e tive que ir dormir na casa da vó. A vó que me explicou que a mãe tinha que descansar, por isso que tinha que ficar no hospital e depois ela, o pai e a minha irmãzinha iam pra casa e eu ia também. Pedi pra ver a mãe e a nenê no hospital, mas a vó disse que eu era muito pequeno e que não iam me deixar entrar - deixa, vó, eu tô morrendo de saudade da mãe - e ela disse que depois de amanhã eu ia ver as duas. O tempo passou devagar até o pai ir me buscar na casa da vó e me levar pra casa - vamos comprar um presente pra tua irmã, ele disse - já sei, vamos comprar um cachorrinho pra ela, eu falei e ele ficou furioso - eu já disse que não quero uma merda de cachorro em casa, Marquinhos, ainda mais agora que a gente tem um nenê. Eu chorei baixinho e o pai disse que não precisava chorar, que ele não tava brabo comigo e a gente foi numa loja grande do Shopping e comprou um presente pra minha irmã e uma bola de futebol pra mim. Quando a gente chegou em casa eu corri pra abraçar a mãe, mas a Vanessa tava mamando e não deixou um espacinho pra eu abraçar a mãe e ir no colo dela - mãe, me dá colo? - deixa disso, Marquinhos, a tua irmãzinha tá mamando agora, e você já tá grande demais pra ficar no colo. Agora eu era grande pra ficar no colo, mas antes ela me pegava e me chamava de nenê - quando é que eu vou poder brincar com a Vanessa mãe, eu perguntei e ela me disse que eu não podia nem chegar perto do nenê porque ela ainda era muito pequena e eu podia acabar machucando a coitadinha. Daí eu esperei ela dormir e quando a mãe botou no berço eu joguei minha bola de futebol pra ver se ela sabia pegar. A bola caiu em cima da Vanessa e ela começou a chorar - calma nenezinho, eu disse, se você não quer jogar bola a gente não joga, mas ela continuou chorando e a mãe e o pai chegaram no quarto e viram que a culpa era minha. A mãe veio correndo, pegou a Vanessa no colo e o pai me pegou pela orelha e me deu umas palmadas. Eu sabia que ia acabar apanhando por causa da minha irmãzinha, e jurei que nunca mais ia brincar com ela. Na minha hora de dormir, a Vanessa já tava deitadinha, mas foi só eu começar a dormir que ela começou a fazer uns barulhinhos. Olhei e ela tinha vomitado. Fui até o quarto da mãe e do pai, mas eles tavam dormindo. Voltei pro quarto e ela tinha vomitado mais um pouquinho - porcalhona, eu disse, e dei um tapa nela. Daí a Vanessa começou a chorar e eu pensei que ia acabar levando mais umas palmadas do pai, então eu tapei a carinha dela com o travesseiro - calma, nenê, eu disse, eu não vou te bater mais, mas ela não entendeu e começou a mexer os bracinhos e as perninhas com força. Se ela não parasse, o pai e a mãe iam acordar e eu ia apanhar de novo. E eu fui ficando com brabo com a Vanessa, porque eu apanhava por causa dela, e não pude ficar com meu cachorrinho mas tinha que dividir meu quarto com ela, e porque quando eu quis comprar um cachorrinho pra ela o pai não deixou. Daí eu pensei que podia fazer com ela a mesma coisa que eu fazia com o Paulinho quando a gente brigava e comecei a apertar o pescocinho dela - fica quietinha que nem o Paulinho fica quando a gente briga, Vanessa, e eu paro de apertar o teu pescocinho. Mas ela era teimosa e não parou e eu tive que apertar o pescocinho dela cada vez mais forte. Até que ela entendeu e ficou quietinha. Agora eu podia dormir e a mãe e o pai iam ficar orgulhosos quando vissem que eu sabia cuidar da Vanessa direitinho. E amanhã mesmo eu ia pedir um cachorrinho de novo.

Doce

A gente vive de um jeito estranho. Eu mesmo, apesar das dificuldades que ando passando, tinha tudo pra me considerar um cara feliz. Pelo menos é o que todo mundo pensa. Também não estou aqui pra explicar o que me deixa triste. Não estudei pra tanto, é por isso que consulto um psicólogo. Mas nem sempre adianta. Daí ele me passou adiante pra um psiquiatra. Despejei todos os meus problemas pro sujeito, três décadas de problemas, e ele ficou me olhando com cara de pena (talvez eu esteja virando paranóico). Depois me deu um remédio pra depressão e outro pra ansiedade. O de ansiedade eu devia tomar antes de dormir e sempre que eu quisesse me machucar – eu tenho esse hábito. O de depressão é pra ficar tomando por um longo tempo. Saí do consultório me sentindo um pouco pior do que quando entrei, porque não queria ouvir um diagnóstico positivo a respeito da minha loucura. Meu vô era meio pirado de ser internado, os irmãos do meu pai eram alcóolatras, sei lá mais quantos malucos eu tenho na família. Só sei que não são poucos e eu, agora, tinha entrado pra galeria. Agora eu tinha uma receita azul e outra em duas vias. As duas pra malucos em potencial. Mas, meu amigo, quando se fica louco, nada melhor do que tomar os remédios. É mais seguro. Então, lá vou eu comprar meus remédios. Remédios que eu não tenho dinheiro pra pagar, mas que vou conseguir, porque eu posso estar fodido mas não me entrego. O cartão de crédito eu dava um jeito depois. Só queria deixar de ser maluco. O consultório era numa rua legal, dessas onde os prédios são enormes e os carros estacionados neles, idem. Os carros estacionados na rua também eram bem melhores e mais novos do que o meu. Eu estava caminhando até a esquina, onde eu sabia que tinha uma farmácia, numa rua movimentada o bastante pra não se ouvir o que acontece do outro lado. E daí veio o silêncio. O maldito silêncio que me fez ouvir o que eu não queria. Dois papeleiros com um carrinho cheio de lixo seco reviravam a lixeira de mais um prédio de gente bem de vida. Tiravam de lá as latas, as garrafas, os papéis, qualquer coisa que rendesse uns dez pilas no fim do dia. E eu ouvi, eu juro, porque o tempo parece até que parou naquela hora. Ouvi a felicidade suprema de um perguntando para o outro se ele queria comer um doce. Imagina quem não vai querer comer um doce quando não come nada? É claro que ele queria, queria muito. A barriga dele devia trovoar de fome. Então o que perguntou explicou “tá cheio de salada de fruta nesse pote”. Eu não parei. Eu não queria parar. Uma salada de frutas atirada no sol a não sei quanto tempo, pra alguém como eu e tu, deve ser um horror. Mas eles estavam felizes de verdade com ela. Com certeza, as crianças da casa dos ricos deviam ter jogado os restos dos seus pratos, com pedaços de fruta mastigados e cuspidos de volta naquele pote. Mas os dois papeleiros não tavam nem aí. Olhei não querendo ver, e eles comiam bem felizes. Fui até a farmácia e gastei uma quantia imoral nos remédios que vão me deixar melhor. Na volta, fui até a lata de lixo, levantei a tampa do pote e ainda tinha um monte de salada de frutas ali. Não parecia tão azeda. Não parecia tão ruim. Parecia até que, pra ser de graça, estava muito boa. Então eu fiz como os dois papeleiros. Com as mãos em concha, recolhi um pouco da salada de frutas. Experimentei. Comi mais e mais. Eu acho que também estava querendo um doce.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Da Janela do Meu Carro

Em 2009, ainda morando em Porto Alegre, nas minhas bandas de carro de um lado para outro, volta e meia via alguma cena que gostaria de fotografar. Aproveitei a câmera de 5 megapixel do celular e comecei. Eu fotografava tudo de bacana que pintasse pelo caminho. Viciei na porra e fiz um blog pra isso, que se chamava Da Janela do Meu Carro.

No dia 6 janeiro de 2010 vim para São Paulo. Em fevereiro, vendi o carro para conseguir sobreviver nessa cidade maluca. Foi o final definitivo de um projeto que me deu muito prazer durante três meses e que rendeu algumas fotos bem interessantes.

Como o Depósito de Tudo nasceu pra guardar minhas coisas espalhadas pelo blogspot, resolvi importar o conteúdo pra cá. Como as postagens aparecem em ordem cronológica, as fotos estão entre setembro e dezembro de 2009 nos arquivos.

Se você quiser ver as fotos direto na fonte, é só acessar http://janeladomeucarro.blogspot.com.

Fique à vontade pra olhar as fotos, baixar, usar em anúncios e comerciais. Depois eu vou atrás de você pra cobrar meus direitos autorais.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Ela quer levar uns tapas na cara

Ela está nua. E é tão delicada. Ela está sentada na cama. E quer levar uns tapas na cara. Eu pensei que esse dia nunca chegaria.

Bato forte com a direita. Ela nem vira o rosto. Depois chega perto de mim.

- Eu quero mais.

Como ela está perto, o tapa sai curto. Pega um pouco na orelha. Ela aguenta. Reconheço a marca da minha mão no seu rosto. Ela se afasta um pouco.

- Bate até eu pedir pra parar.

Antes dela terminar, aproveito a distância e bato com as costas da mão no lado esquerdo do seu rosto. Este ela não estava esperando. O rosto dela já não está tão confiante. Então bato de novo. Ela tenta se defender, mas ela quer que eu bata. Empurro ela pra mais longe de mim, bato no rosto dela que nem nos filmes, na ida e na volta. Como o segundo tapa vem da esquerda para a direita, ela gira o corpo e cai perto com o lado direito do rosto virado para cima. Aquilo vai ficar roxo daqui a pouco.

Vou para cima dela. Puxo seus cabelos. Ela está chorando. O nariz escorre. Levanto a mão para dar mais um tapa. Talvez eu só dê mais este e pare. Ela me olha nos olhos. Agora parece que está com medo. Ela está tremendo.

- Para, por favor.

Ela deita chorando. Eu saio da cama. Fico olhando como ela é delicada, parece uma menina. Não sei como ela entrou nessa de apanhar. De onde é que ela tirou essa ideia? Ela olha para o meu pau.

- Bate uma punheta pra mim?

Começo a alisar meu pau. Tava mesmo com tesão. Os tapas, olhar pra ela chorando. Não pensei que ia gostar tanto. Queria meter o pau nela, mas uma punheta não vai matar ninguém

Ela chega mais perto. Cospe na cabeça do meu pau. Pra mim isso só acontecia em filme pornô.

- Eu quero ver.

Quando a gente é moleque, o maior pesadelo é ser pego batendo punheta por uma menina. Daí um belo dia você cresce, e a mina quer ver você descabelando o palhaço.

Ela senta para ver mais de perto. Tira a minha mão e pega o meu pau. Ela sabe o que está fazendo. Sempre soube.

Penso que ela poderia chupar um pouco, mas não peço.

Ela deixa as pernas para fora da cama e deita. Continua olhando, como se um cara batendo punheta fosse um espetáculo legal de ver.

Ela sabe que eu vou gozar.

- Goza em mim.

Ela está deitada. As lágrimas já secaram, mas seu rosto continua vermelho. Vou chegando mais perto dela. Ela abre as pernas e eu fico batendo punheta com o pau muito perto da sua buceta.

- Goza.

Não é uma ordem. É um pedido. Olho pra buceta dela. Enfio o pau e ela geme baixinho.

- Fora.

Antes de gozar, tiro o pau. É muito melhor bater punheta com o pau molhado de buceta. Gozo em cima dela. Ela esfrega na barriga, no peito, esfrega a buceta com o que sobrou. Eu deito em cima dela. Estamos cansados e sujos. Ela tenta levantar.

- Preciso me lavar.

Seguro firme, não deixo ela sair. Agora, sua delicadeza parece fragilidade. Ela se aninha em mim. Beijo o seu ombro. Ela sorri. Não sei o que falar. Depois de uma foda é mais fácil conversar.

- Agora você pode fazer tudo que quiser comigo. Sempre.

domingo, 18 de julho de 2010

A mãe virou robô

1. Quando a gente é criança, a vida é muito boa. Eu acordo, tomo café, como pão e brinco até a hora do almoço. Daí eu almoço, olho TV. Brinco mais um pouco e me acomodo no colo da minha mãe pra ver Sessão da Tarde. A mãe e eu gostamos dos filmes que têm lutas, ou das comédias, nunca dos filmes “de cantoria”, que é como a mãe chama os musicais. Mais do que dos filmes, eu gosto mesmo é de ficar no colo da mãe. Pode chover, trovoar, pode até entrar um morcego em casa como já entrou uma vez: no colo da mãe eu não tenho medo.

2. Meu pai é jornalista. Ele trabalha até tarde no jornal – sai de casa de manhã e só volta quando a gente está dormindo. No sábado ele vem pra casa mais cedo. No domingo ele tem folga. O pai é legal e eu gosto dele. Ele me conta histórias do Grêmio e eu adoro o Grêmio por causa do meu pai. Quando eu crescer, vou querer ser igual a ele. E vou casar com uma mulher igual à minha mãe.

3. Minha irmã mais velha é muito legal. Ela lê histórias, me ajuda no banho, faz sanduíche. Ela vai bem na escola e ajuda na casa.

4. Eu me dou bem com minha irmã do meio. Mais ou menos bem. Ela cria umas encrencas na casa e briga muito, mas a gente brinca mesmo assim. E é divertido.

5. A minha irmã mais nova faz tudo melhor do que a gente. Ela é a mais inteligente da casa e ainda sabe um jeito de pôr os pés atrás da cabeça. O pai diz que ela vai ser bailarina e sempre fala que ela é inteligente. A gente brinca e briga muito, porque ela era o nenê da casa até eu nascer, e agora tem ciúme de mim.

6. Às vezes a mãe sai à tarde. Minha irmã mais velha cuida de mim, ou fico na casa de alguma vizinha. Ela vai ao centro bem no começo da tarde e só volta quando já tá quase escuro, ou escuro de verdade. Daí eu nem vejo a Sessão da Tarde, porque não tem a menor graça. Eu até gosto quando a mãe vai ao centro, porque ela sempre me traz um presente na volta.

7. A mãe me disse que eu não vou mais poder ver os filmes da Sessão da Tarde no colo dela. Fala uma coisa sobre uma operação na coluna, que eu descubro que são os ossos que a gente tem nas costas. Ela sente muita dor nas costas e vai operar. Enquanto ela estiver doente, a madrinha da minha irmã mais nova vai cuidar da gente.

8. A Dona Zoé é bem velhinha e bem braba. Quando a gente vai na casa dela, nunca pode mexer em nada porque ela não gosta. E ela gosta mais da minha irmã do que de mim, por isso que é madrinha dela. A Dona Zoé sabe fazer um monte de comidas boas.

9. Continuam me dizendo que eu não vou mais poder ficar no colo da mãe. Eu não sei o que vai acontecer direito, por que ela não vai poder me pegar no colo, nem quanto tempo vai demorar pra ela se operar.

10. A mãe foi pro hospital e a Dona Zoé veio para nossa casa. A mãe dormiu no hospital muitos dias, e demorou pra eu poder ir até o hospital para visitá-la. Eu me lembro de ir com o pai num dia, e que o hospital ficava no alto de uma lomba enorme. O pai não me levava no colo porque tinha hérnia, então eu tina que subir sozinho.

11. Não me lembrava de ter entrado num hospital antes. Um hospital era uma coisa enorme e muito cheia de gente. A mãe estava deitada e chegou a janta. Como ela não tinha fome, eu comi tudo. Gostei da comida do hospital. E gostei de ver a mãe.

12. Na hora de voltar pra casa, desci a lomba correndo. Eu, que não era muito rápido, fiquei apavorado com minha velocidade. Ia ser legal visitar a mãe no hospital: podia comer a comida dela e ainda correr muito rápido na volta.

13. Enquanto a mãe fica no hospital, o pai almoça com a gente. Antes ele vinha pouco, às vezes trazia um amigo pra almoçar junto. Mas agora ele vem mais vezes. O almoço em casa é movimentado. As gurias têm que comer rápido pra irem à escola. O pai também tem pressa pra chegar no trabalho. Depois do almoço, a casa fica só pra mim e pra Dona Zoé.

14. Tento ver Sessão da Tarde com Dona Zoé, mas não consigo me acomodar no colo dela como me acomodava no da mãe. E ela fica fazendo crochê o tempo todo, nem vê o filme. Que saudade da mãe.

15. A mãe vai voltar pra casa. Fico feliz, apesar de gostar de visitar a mãe no hospital. Alguém me explica que ela vai ter que voltar pra lá muitas vezes. Então eu vou ter que voltar lá também.

16. O pai chega em casa com a mãe. Ela virou robô. Usa uma coisa que vai do pescoço até embaixo da barriga; parece uma armadura. Ela não pode se mexer direito e tem que ficar deitada. Deitada o tempo todo.

17. Alguém me explica que a mãe teve que pôr uma barra de platina nas costas, e que aquilo que ela tá usando, e que parece uma roupa de robô, é um gesso. Ela vai usar esse gesso muito tempo, até ficar boa.

18. Agora a gente fica assim em casa. A mãe, a Dona Zoe e eu. A Dona Zoé faz tudo porque a mãe não pode fazer muita coisa. Ela não pode brincar comigo e nem pegar no colo. Mas ela é carinhosa.

19. Minha irmã mais velha ajuda muito na casa. Ela sabe fazer umas comidas, lava a louça, varre, arruma os quartos, ajuda a mãe. Eu fico com ciúme porque não sei fazer nada.

20. Minha irmã mais nova é um doce. Ela é boazinha e vive ganhando elogios porque vai bem na escola.

21. Minha irmã do meio apronta muito. Sai de casa, fica na casa dos vizinhos, volta tarde. O pai bate nela às vezes, e eu não entendo. Só tenho medo que ele machuque ela. Não queria que ele machucasse ela. Mas a gente é pequeno demais pra impedir que ele bata e também pra não deixar a nossa irmã fazer confusão.

22. A mãe volta para o hospital para trocar o gesso. Vai ficar uns três, quatro, cinco, sei lá quantos dias. Eu vou visitá-la.

23. Nunca tive dor de cabeça, mas acordei hoje com dor de cabeça. Vou até a cozinha onde a Dona Zoé está fazendo bolinhos de batata e digo o que estou sentindo. Ela não me dá remédio e me manda voltar pra cama. Eu durmo e, quando acordo, o pai e as minhas irmãs comeram todos os bolinhos de batata.

24. As gurias entram em férias. As férias são assim: a mãe, coitadinha, deitada no sofá e todos nós em volta dela. A mãe não conseguia levantar sozinha, sempre um de nós tinha que dar a mão pra ela. Mas nesse dia eu tossi e fiz uma brincadeira de continuar tossindo. A mãe se assustou e levantou muito rápido e sozinha do sofá. A gente riu, mas ela ficou triste comigo.

25. Ah, no ano que vem eu vou para escolinha que fica na praça na frente da nossa casa. Eu não queria, mas me disseram que ia ser bom. Acho que eu vou entrar no judô também.

26. O Natal era diferente lá em casa por causa do trabalho do pai. Nesse ano foi ainda mais, porque a mãe não podia ficar junto com a gente. Eu ganhei um brinquedo bem legal e a gente ficou jogando e ouvindo música no radião do pai até tarde. A mãe não podia ficar com a gente.

27. Por causa do gesso, a mãe não podia tomar banho como a gente. De vez em quando,
minha madrinha, minha vó, minhas primas e minhas irmãs iam para o quarto lavar o cabelo da mãe. Nunca entendi por que eu não podia ficar junto. Será que a mãe fica pelada?

28. Não me sinto mais como antes. Não gosto da Sessão da Tarde, não preciso da mãe por perto pra mais nada. Quando me perguntam se eu sou criança, respondo que sou adolescente. E todo mundo ri de mim. Mas eu acho que não sou mais criança mesmo.

29. Tô tão grande que já vou para a escola. Eu não gosto do que tem que fazer dentro da sala, só gosto de brincar na pracinha. O pior de tudo é que agora as minhas irmãs estudam de manhã e passam a tarde com a mãe. Hoje eu chorei no banheiro. Teve uns outros dias em que chorei também. Mas hoje eu não conseguia parar de chorar e me pegaram. Eu só queria ir pra casa e ficar com a minha mãe.

30. Não gostei de judô. Era só agarramento com outros guris. Pra piorar, um dia o pai apertou o meu pinto no fecho da calça depois da aula. Não vou mais.

31. A mãe continua indo para o hospital de vez em quando. Agora já acostumei. Tenho um colega que mora perto do hospital. Um dia desses eu tava de bicicleta lá perto, com o meu pai, e encontrei com ele. A bicicleta dele não tem mais rodinhas.

32. Tentei jogar futebol na escola, tropecei, caí e ralei o joelho. Chorei muito. Tava morrendo de saudade da minha mãe.

33. A minha irmã do meio continua fazendo confusões. Mas acho que o pai bate muito nela.

34. Um dia me disseram que a mãe ia tirar o gesso. Era a última vez que ela iria para o hospital. E ela foi para lá e passaram mais uns dias. Demorou mais do que nunca.

35. Hoje eu vou ficar na escola só até a hora da mãe chegar. Daí vão me buscar, me dar banho e a gente vai fazer uma festa. Tem refrigerante e salgadinhos em casa. Talvez os meus tios e os meus primos apareçam.

36. Já chorei um monte de vezes na escola, mas hoje eu podia ralar os dois joelhos que nem ia chorar. Só quero que venham me buscar de uma vez pra ver a mãe sem aquela roupa de robô.

37. Chego em casa e depois o pai chega com a mãe sem gesso. Eu não me lembrava mais de como ela era sem o gesso. Todo mundo tá feliz. A mãe disse que ficou um ano e um dia engessada. Eu não tinha nem ideia de que tinha passado tanto tempo.

38. A operação foi um fracasso.O médico da mãe usou uma técnica experimental que, anos mais tarde, foi abolida. Algumas pessoas entraram na justiça e ganharam indenizações por erro médico. A gente não. A gente só quis esquecer aquilo tudo.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Um texto por dia - Não durou dois meses

Entre março e abril de 2003, comecei meu primeiro blog. A proposta era ousada, escrever um texto de ficção ou uma crônica por dia, sem escorregar para os vícios dos blogueiros do começo do século, que era escrever sobre eles mesmos, em egotrips enfadonhas. Tava fazendo free em algum lugar e acabei mudando de emprego. Trabalhando com meu amigo Paulo Silva, nunca mais tive tempo para escrever ficção, quanto mais todo o dia. O Delegado, como a gente chamava, ficava de plantão e sempre prendia uns filhos da puta (saudade do amigo Paulinho e das noitadas de trabalho insólitas no Morro Santa Tereza - eu terminava minha parte e dormia no chão da sala).
Os textos abaixo são dessa época. Espero que você se divirta.

Roteiro para filme de um minuto (umtextopordia.blogspot.com)

Tela preta. Música sertaneja com som de rádio de pilha.
A câmera mostra uma casinha simples, isolada, num lugar escuro.
Corta para dentro da casa. Uma mulher cozinha. Dá pra ver que ela está preparando um jantar caprichado, apesar da casa humilde. A mesa está arrumada para duas pessoas. Ela termina de preparar a comida e fica esperando.
De repente, a porta abre bruscamente.
Corta para close da mulher. A expressão alegre pela chegada do marido muda para um olhar furioso.
Ponto-de-vista da mulher. O marido, com uma arma na mão, traz um homem de terno e gravata com um saco de pano preto na cabeça está parado na porta da casa.
Plano aberto mostrando os três.
A mulher, que está sentada à mesa, levanta e grita:

- Antônio Carlos. Quantas vezes eu já te pedi pra não trazer trabalho pra casa?

Pênalti (umtextopordia.blogspot.com)

A gente estava perdendo o jogo até o centroavante ser derrubado na área. Como o jogo não era num campo de vila, o juiz marcou sem medo de apanhar na saída. Pode ser no Maracanã ou na várzea, jogo de campeonato ou só uma partidinha numa manhã de sábado: quando o juiz marca pênalti, todo mundo corre pra cima e reclama. Apesar disso, não existe registro na história do futebol de um juiz que tenha desmarcado a penalidade. Pode até já ter acontecido, mas eu nunca ouvi.

O nosso time é esforçado. Tem quem jogue bem, tem quem não jogue grande coisa, mas todo mundo corre. E todo mundo gosta de fazer gol. Só que na hora de bater um pênalti num jogo complicado como este, ninguém se apresenta.

Eu não tenho medo. Nunca tive.

Quando o juiz apitou, eu já sabia que o destino do time ia estar no meu pé direito.

Jogador profissional treina pra cobrar pênalti e, mesmo assim, erra de vez em quando. Eu só jogo no sábado, trabalho muito durante a semana, nunca treino e nunca errei. Desde guri eu batia pênalti. Sei como correr pra bola sem deixar o goleiro saber pra onde vou chutar, bato em qualquer canto, consigo esperar o goleiro se mexer pra colocar a bola no lado contrário.

Mas hoje eu não tô muito seguro.

Parece que todo mundo tá olhando pra mim. As poucas pessoas em volta do campo não estão acreditando que eu vá guardar. Eu não consigo escolher o canto, a concentração escapa.

A bola tá na marca. O juiz apita. Não vou inventar.

Respiro, escolho o canto, imagino a batida, a bola entrando, meus parceiros gritando e me abraçando. O goleiro se mexe, fala demais. Corro pra bola e bato de leve nela, porque não sou ignorante.

Eu nunca errei um pênalti antes.

O Cris e a Carol/A Carol e o Cris (umtextopordia.blogspot.com)

O Cris e a Carol são um casal de tatuadores. Eu tenho feito minhas tatuagens com eles nos últimos dois anos. Cheguei lá porque a Carol é irmão do meu amigo Beto (grande amigo, um irmão mais novo). Então um dia fui me riscar com ela, achei o Cris um cara legal também e resolvi que ia ficar me tatuando com eles. Acho que já faz umas cinco ou seis tatuagens.

Mas não é sobre o trabalho deles que eu vou falar, apesar de recomendar para todo mundo. É sobre a admiração que eu sinto pela história deles.

Às vezes eu fico pensando como a gente só acredita que a vida pode ser legal se for cheia de coisas difíceis de conseguir. Um carrão, um apartamento enorme, dinheiro pra viagens, roupas legais, CDs, DVDs, o caralho. Daí se mete num trabalho de merda pra ganhar grana, pra comprar, pra fazer crediário, pra ter tudo que acha que precisa pra ser feliz. E quando consegue, nada muda.

A Carol e o Cris não são assim.

Eles fazem o que gostam, ganham sua grana, vivem numa boa e eu posso afirmar que se amam. Tatuando um maluco numa hora, furando outro logo em seguida, trocando uma idéia com cada um, conhecendo uma história diferente a cada cliente, ouvindo punk rock. Quando chega o verão, geralmente eles alugam uma loja e vão trabalhar na praia. E conhecem mais gente, ouvem outras histórias. No verão passado eles trabalharam tanto que resolveram tirar uma folga por semana, na quarta-feira. Pra descansar, jogar um game.

Eu acho isso legal pra caralho. É a vida que eu queria ter.

Pena que eu não sei desenhar.

É só tristeza (umtextopordia.blogspot.com)

Tem sol na rua, um frio agradável, mas tudo é só tristeza. Não adianta remédio, não adianta companhia. Quando esfria desse jeito, e os dias são tão lindos, parece que eu fico mais triste. Acho que é beleza demais pra mim, que não mereço.

Saio pra dar uma volta. Os carros andam devagar, as pessoas sorriem. Eu não. Eu quero atrapalhar. Ando rápido, mudo de pista, buzino. Se eu não posso ser feliz, ninguém deveria ser. Mas eu sou tão pouco, tão pequeno, que fica impossível lutar contra milhares de pessoas e contra o tempo. O tempo lindo.

Um sujeito com a família fica irritado com a minha buzinada. Acelera pra não me perder de vista. Quando paramos num sinal, ele baixa o vidro pra discutir comigo. Antes que ele possa falar qualquer coisa, solto a maior sequência de ofensas que um dia lindo como esse poderia suportar.

Qual é, filho da puta? Tu comprou essa porra dessa rua, seu fodido? Comprou pra passear com essa vagabunda escrota e com estes moleques ranhentos? Então faz o seguinte, o corno: enfia cada paralelepípedo dessa rua no teu rabo. Se sobrar, enfia na tua mulher e nesses viadinhos que tu acha que são teus filhos. Porque esses filhos da puta aí no banco de trás devem ser filhos dos teus camaradas. Só tu não sabe que essa vadia dá pra todo mundo.

Arranco tranquilamente. O sujeito continua no sinal. Não sabe o que fazer.

Não tô mais triste. Talvez tenha passado tudo para ele.

O sapo malhado e a girafa curiosa (umtextopordia.blogspot.com)

Nos últimos dias, tenho dificuldades para escrever. É só arrumar o papel na máquina que um deles aparece. Um dia é o sapo malhado, no outro, a girafa curiosa.

O sapo malhado é metido a chefe. Ele sempre vem com uma conversa estranha. Gosta de termos em inglês e de coachar piadas que ninguém entende. Ou entende e não acha a menor graça, o que dá no mesmo.

Meus colegas de trabalho não sentem tanto nojo do sapo malhado quanto eu. Talvez até sintam, mas como acreditam que ele é chefe, conseguem disfarçar melhor. Um deles até aperta a mão e bate nas costas dele.

Invariavelmente, quando o sapo malhado sai da sala, não consigo escrever nada além de uma frase:

Eu odeio o sapo malhado.

Felizmente, o sapo vai coachar em outra lagoa um dia sim, outro não. O problema é que o papel de nos incomodar fica para a girafa curiosa. Essa criatura é mais desprezível do que o sapo malhado. É que ela é uma espécie de encarregada de tocar os escravos quando o sapo não está. E, talvez pela irracionalidade comum aos animais, ela consiga ser mais má, mais chata e mais nojenta que o chefe.

Quando a gente olha para uma foto de um sapo e de uma girafa, pensa que isso é impossível. Mas basta ser escravo dos dois pra saber que não.

O método de aproximação da girafa, ao contrário do utilizado pelo sapo, é mais idiota. Enquanto o sapo se aproxima falando em inglês e fazendo piadas sem graça, a girafa chega fazendo voz de criança e espiando por cima do ombro dos outros. Em comum, só a estupidez de acreditar que os escravos não desconfiam que eles estão conferindo o trabalho.

O sapo, que é chefe, nunca fala o que vê nos fazendo no horário de trabalho. A girafa, que não tem autonomia nenhuma, conta tudo que vê para o sapo.

Foi por isso que eu acabei demitido.

Um dia, depois de ver muitas folhas em branco, a girafa reparou que havia alguma coisa escrita na folha. Esticou o pescoço daqui e dali e leu o que não queria.

Eu penso, sim. Vocês acham que.

Quando o sapo chegou de sua viagem, me chamou na casa grande, deu as 10 chibatas do salário proporcional aos dias trabalhados e disse que eu não precisava voltar no outro dia.

Continuo procurando um lugar pra trabalhar outra vez. Mas sempre que vejo um sapo ou uma girafa, podem até me oferecer mais chibatas do que no meu trabalho anterior. Mesmo assim, eu nem considero a proposta.

O Grandão (umtextopordia.blogspot.com)

Minha vida não era muito divertida desde que meu marido morreu, faz uns dezesseis anos. Eu até queria morrer pra ficar junto com ele. Os filhos já tinham crescido, eu já não precisava mais de um homem comigo, nem de parentes. Apesar de não ter mais o companheiro e nem muita vontade de viver, tinha tudo que precisava pra continuar viva. As peças que eu alugava na minha casa rendiam um dinheirinho que pagava a minha comida, as contas e ainda sobrava um pouco. E tinha mais a pensão do falecido, que também não era grande coisa, mas que ajudava bastante. Quando o meu marido morreu, já estavam construindo o aeroporto. Demorou nove anos até ficar pronto. Da sacada da minha casa, acompanhei a construção de um bom pedaço dele. Não consegui ver a construção do prédio, que dizem que é lindo, mas tudo bem. Às vezes, um filho ou um neto apareciam pra me visitar, mas em geral, quem ficou comigo nesses anos todos foram os meus inquilinos. Eles sabem que aqui sempre vai ter um chimarrão e, com sorte, alguma coisa pra comer. São todos pobres, mas são gente boa. Até o alcoólatra, que mora no pior quarto e vende mercadorias roubadas, é legal. Quando sobe aqui, sempre traz uma cachaça pra fazer caipirinha. Eu entro com o limão e o açúcar e ele sai, sempre, se segurando pra não cair quando desce a escada. O bairro onde eu moro é uma vila. Uma vila enorme que agora tem vista para o aeroporto. Tudo aqui é muito organizado: a pracinha é dos traficantes, as ruas mais ou menos escuras são dos ladrões e as ruas escuras de verdade são dos estupradores. Sorte que na minha rua tem luz. Mas como eu moro aqui desde o começo da vila, comigo ninguém se mete. E todo mundo, até um sujeito que eu só descobri que era estuprador depois que foi linchado pelo pessoal da vila, acaba vindo na minha casa conversar comigo. Não é tão ruim viver assim, mesmo sem marido e quase sem família. Felizmente o aeroporto foi inaugurado. No começo, eu não saía mais da sacada. Ficava olhando os aviões manobrando na pista, pousando e decolando o dia todo. Até que depois de dez dias, eu vi o grandão. O grandão foi o maior avião que eu já vi em toda a minha vida. Eram sete e meia da noite quando ele começou a andar pela pista. Às vinte pras oito ele decolou. E veio subindo, subindo, subindo até passar bem em cima da minha sacada. Minha cadeira tremeu, os vizinhos que estavam tomando chimarrão comigo se assustaram: acharam que o grandão ia cair bem em cima da gente. Que nada, ele passou reto. No outro dia de manhã, fui pra sacada, mas nenhum dos aviões era como o grandão. O receptador alcóolatra me disse que o grandão era um Boeing 727, mas eu prefiro chamar ele de grandão. No mesmo horário, ele decolou de novo. Depois disso, nunca mais perdi meu tempo olhando os outros. Mas todos os dias, às sete horas, esquento a água do chimarrão e vou pra sacada. Daí, aconteça o que acontecer, não me mexo dali até o grandão levantar vôo. Meus filhos pararam de me visitar. Disseram que eu tinha ficado louca de perder tempo todos os dias pra ver um avião. Não sei por que eles falam isso, acho que é por que eles já viajaram muitas vezes de avião. Eu não preciso nem subir num avião. Tenho o meu amigo grandão que faz um show pra mim todos os dias. É tão lindo que às vezes eu esqueço de comer. Em outras, nem tomo banho. Mas o grandão eu nunca esqueci desde que inauguraram o aeroporto, há sete anos. Se eu pudesse, fazia um laço e puxava ele bem aqui, para o pátio da minha casa. Hoje eu nem penso mais em morrer. Quer dizer, às vezes eu penso, sim. Mas não quero morrer dormindo como antes. Eu queria que o grandão subisse um pouquinho e começasse a descer, descer, descer até cair aqui, na sacada da minha casa. Se existe um céu, e se a gente vai pra lá quando morre, eu quero que o grandão me leve.

Minha esquiva (umtextopordia.blogspot.com)

A luta começou mal. O outro cara é mais forte e um pouco mais alto que eu.
Começa batendo firme mas os golpes explodem na minha guarda. Já lutei muito
antes e sei que todos os lutadores fazem isso pra tentar intimidar o adversário.
Eu devia ter feito o mesmo, mas o cara parece uma máquina de dar porrada.

Meu treinador grita pra eu me mexer, pra não ficar parado na frente dele. É isso
que eu tento fazer, mas o sujeito não para de tentar me acertar. Vou para o meio
do ringue e deixo ele girar. Vou fazer o que sempre fiz de melhor. Vou me
esquivar e bater na hora certa. Ganhei todas as lutas que fiz até hoje desse
jeito, o velho que fique puto nos próximos três minutos e que fale alguma coisa
que se aproveite no intervalo.

Um jab e eu escapo. O outro vem tão rápido que me acerta quando tô voltando. E
junto vem um direto que parece de peso-pesado. Se o árbitro não tivesse
conferido as luvas, eu ia achar que esse cara guardou uma ferradura ali.

Solto um jab e o cara nem se defende. Deixa eu acertar e não se abala. Ainda ri
da minha cara pra dizer que não sentiu nada. Os poucos que vieram ver a luta se
divertem com isso e o árbitro, que quer mais que essa luta acabe de uma vez, não
diz nada. Tento um cruzado, ele desvia e solta uma sequência rápida e dolorida
na minha cara: um jab que acerta a testa e empurra, um direto no nariz que enche
mais olhos de lágrimas e um cruzado que acerta o queixo e faz toda a minha
cabeça chacoalhar. As malditas bolinhas pretas aparecem na frente dos meus olhos
e eu me agarro rápido pra não apanhar mais. O árbitro tenta separar mas eu
continuo agarrado no cara até as bolinhas pretas desaparecerem. Quando eu solto
um pouco o cara, ele me empurra e vem pra cima de novo.

Tem uma hora numa luta em que a gente não pensa em fazer nada. Só quer que o
tempo passe pra ir pro canto e sentar um pouco, tentar imaginar um jeito de
acertar o cara. Mas ainda falta muito tempo pra isso acontecer.

O sujeito continua vindo pra cima. Solta um jab e consigo esquivar. Tento
devolver um cruzado e erro. Não sei como se vê de fora do ringue, mas parece que
eu tô em câmera lenta e ele tá acelerado. Mais golpes pra cima de mim e a minha
esquiva, que sempre foi o meu forte, parece que não funciona muito bem. Saio
para um lado e ele me acerta, saio para o outro e ele acerta também. Não sei se
o cara se dá conta, mas eu tô apavorado. Fujo e acabo preso no canto. Agora só
tenho minha esquiva pra me salvar.

Quem tá fora do ringue acha que a gente não pensa lá em cima. Bobagem, a gente
pensa muito. Enquanto o cara bate com força, fico me lembrando da noite de
ontem. Eu não devia ter saído de casa pra passar a noite com a Maria. Aquela
neguinha nunca consegue me dar só uma vez. Quando cheguei na casa dela, disse
que não podia trepar muito. Mas é muito mais fácil aguentar esse cara me dando
porrada do que comer a Maria só uma vez. Só agora, que minha esquiva não tá
funcionando, é que eu vi que devia me controlar.

Mas é foda, muito foda, resistir aos golpes da Maria. Depois que a gente transou
uma vez, ela ficou toda manhosa do meu lado. Falou que nunca na vida tinha
conhecido um cara como eu, mas que eu era muito mau com ela, que ficava toda
linda me esperando pra trepar só uma vez. Disse que desse jeito não ia me querer
mais, que eu preferia ficar me agarrando e correndo atrás de um sujeito suado do
que transar com ela.

O fígado é meu fraco. E o filho da puta bate tão forte nele que dá vontade de
cair só pra não levar outra pancada dessas. Tento me encolher pra caber dentro
da guarda, mas parece que meus braços encurtaram. Protejo o tronco e o cara bate
na minha cabeça. Nem tento esquivar mais, porque minhas costas e minhas pernas
estão doloridas demais por causa da foda com a Maria.

Eu errei. Eu errei muito. Tinha que ter comido a neguinha uma vez só e saído
fora. Mas não, deixei ela me pagar um boquete. E o boquete da Maria vale lutar
um pouco mais cansado. Pedi pra ela parar, pelo amor de Deus, mas ela foi até o
fim. Eu não queria gozar, mas ninguém faz a Maria parar quando ela tá se
divertindo.

Acho que esse cara deve ser parente da Maria. Porque ele tá me fodendo com essas
porradas e deve estar se divertindo muito. Ele não parou de me bater desde que
tocou a sineta. Minhas pernas ficam fracas como quando eu trepo com a Maria. Uma
delas dobra e meu joelho encosta no chão. Fico olhando pra baixo e ouvindo a
contagem. Será que o sangue aqui no canto do ringue é meu?

Levanto no oito e volto pra luta. Voltei pra luta com a Maria depois dela me
derrubar duas vezes ontem, não é esse cara que vai me deixar no chão de uma vez
só. Mas depois de ter gozado duas vezes, bem que eu podia ter ido embora da casa
dela. Talvez eu conseguisse pelo menos me esquivar quando esse filho da puta
larga os golpes.

Boxe não combina com muita foda. O meu treinador sempre me diz isso um dia antes
da luta. Mike Tyson devia foder muito, por isso jogou tudo fora. Mas também não
dá pra pensar assim. O Maguila ficava um tempão sem comer a mulher antes das
lutas e perdeu um monte de vezes.

Meu olho esquerdo já tá fechado. E o cara cruza de direita porque sabe que eu
não vou ter tempo de ver direito pra me esquivar. Mas se meu olho não estivesse
fechado eu não ia conseguir me esquivar também. Não depois de ter comido a Maria
três vezes ontem à noite.

Quando toca a sineta eu não sei pra que lado ir. Meu treinador corre pra cima do
ringue e me carrega até o banco. Ele grita comigo, joga água na minha cara,
passa vaselina no corte do supercílio esquerdo. Eu não entendo nada. Tô sentindo
a mesma moleza que senti depois que comi a Maria pela terceira vez ontem. Eu
achava que não ia nem conseguir ficar de pau duro de novo, mas ela começou a se
esfregar em mim. Começou a esfregar aquele rabo enorme e durinho em mim. Eu pedi
pra ela parar, mas ela disse que eu era muito burro, que vivia pedindo pra botar
atrás e, bem no dia que ela resolveu me dar, eu não queria. Porra, meu maior
tesão era comer o rabo daquela neguinha. E eu achava que o cara que ia lutar
comigo hoje não ia fazer essa frente. Meu pau ficou duro na hora e eu comi
aquele rabo com muita vontade.

A sineta toca de novo e eu sei exatamente o que tenho que fazer. Tenho que me
esquivar e bater, me esquivar e bater, bater e fugir, bater e rodar. Eu tenho
que fazer com esse cara o que eu fiz com a Maria. Tenho que comer o cu dele.

Ele vem pra cima. Larga um golpe, eu esquivo e tento bater. Mas ele continua
batendo e vai me acertando. É mais difícil controlar esse cara do que a Maria.
Pelo menos depois da terceira foda, ela apagou do meu lado. Esse cara não para
nunca. Os golpes vão acertando tudo: o nariz, o fígado, o estômago e,
finalmente, o queixo. Minha esquiva, que sempre foi minha melhor arma, não
funcionou hoje. Se eu não tivesse comido a Maria ontem pode ser que essa luta
não fosse tão ruim. Se eu não tivesse comido a Maria ontem pode ser que eu ainda
estivesse em pé agora.

Quilombo (umtextopordia.blogspot.com)

Eu sou um escravo. Ou, pelo menos, é isso que meus superiores acham. Não me pagam o suficiente pra comer ou pra ter muitas roupas, exigem muita produtividade e, se pudessem, com certeza me açoitariam quando faço algo que os desagrada.

Eu sou um escravo. Aceito quieto todas as humilhações que meus chefes, ou as pessoas de confiança dos meus chefes, tentam me submeter. Vivo assustado com as ameaças, não quero nunca ter que enfrentar a sua fúria.

Eu sou um escravo. Não posso fazer o que gosto, pelo menos, não posso fazer o que gosto no meu trabalho. Minhas crenças são ridicularizadas e proibidas, meus hábitos não são respeitados, minha cultura é desprezada.

Eu sou um escravo. Qualquer coisa que eu fale ou faça é desconsiderada. Todos os créditos vão para os meus chefes e as pessoas de sua confiança. Acho injusto, quero fugir. Mas pra onde eu posso ir, se não existem mais negros fujões que possam me ajudar?

Foi pensando em tudo isso que eu criei o meu próprio quilombo. Ou meus próprios quilombos.

Meu quilombo é qualquer coisa que me dê a sensação de liberdade.

Pode ser o cigarro, que não posso fumar na minha sala e nem no prédio. É por isso que, ao contrário dos quilombos que ficavam em lugares altos, o meu fica no térreo. Quando o sinhô e seus capatazes enchem muito o meu saco, vou até o térreo, saio do prédio e acendo um cigarro. São cinco minutos, talvez. Mas são cinco minutos em que eu sou eu, em que eu sou livre.

A internet é meu outro quilombo. Esse, sim, pode acabar me rendendo consequências desastrosas. É na internet que eu me refugio quando o feitor me obriga a fazer alguma coisa que nem ele mesmo sabe o que é. É uma pesquisa, sim, mas eu posso aproveitar para ir a lugares onde o sinhô não deixaria.

Meu quilombo pode ser um baseado. Cedo de manhã, ou na hora do almoço, ou no meio de um serão. Porque o sinhô pode destruir meu corpo, mas não pode segurar a minha mente.

Aliás, meu quilombo de verdade fica dentro da minha cabeça. Ali, sim, protegido pelo meu crânio bem duro, fica o único lugar onde o capitão-do-mato não me alcança, onde eu sou mais forte, mas feliz.

E, como Zumbi, prometo que do quilombo da minha cabeça ninguém vai me tirar. E se algum dia eu me sentir ameaçado, cercado, perdido, seguro meus negros pela mão e pulo em direção à morte. É muito melhor do que entregar a minha liberdade.

Pra nós, faltou fé. (umtextopordia.blogspot.com)

Ok. Os Estados Unidos começaram mais uma guerra patética. Montaram aquele circo enorme no meio do deserto pra roubar o petróleo do Iraque, valorizar o dólar e implementar o conceito deles de "liberdade". Um conceito de liberdade meio estranho, porque não respeita a dos outros.

Pois é. Essa liberdade que eles vão impor ao Iraque, já foi imposta na América Latina, na época dos golpes militares. A vantagem era o medo do comunismo que assolava nossas forças armadas. Eles tocavam o terror nos milicos, que faziam toda a merda sozinhos. Faziam porque tinham medo dos comunas, porque queriam poder, porque não amavam o país porra nenhuma e, principalmente, porque não tinham fé.

Ou seja, os Estados Unidos nunca fizeram aqui uma palhaçada como a que estão fazendo hoje no Iraque porque não foi preciso. Porque nosso exército e nossa classe dominante eram compostos por uma escória, um bando filhos da puta que ficaram vinte anos no poder favorencendo os ricos, massacrando quem pensava diferente e fodendo com a vida do povão. E não me falem em milagre econômico. Olha onde ele veio parar.

No Iraque é diferente.

Eles são fiéis. Fiéis a Alá, ao presidente, ao país. Eles vão apanhar, vão ser massacrados, vão perder o petróleo e a autonomia. Daí vão ser livres como os americanos. Vão ser tão felizes quanto os brasileiros, os chilenos, os uruguaios e os argentinos foram durante os regimes militares. Mas eles não vão fazer essa merda por conta própria como nós, malditos cucarachas. Eles vão espernear.

Por isso, essa história pode acabar sendo como as tentativas americanas em Cuba, na Coréia do Norte e no Vietnã. Os Estados Unidos podem não ganhar a guerra, como se fosse possível alguém ganhar uma guerra.

Daí o gigante vai mostrar mais uma vez para o mundo que assusta mais pelo tamanho do que pela habilidade pra matar. Mais pela brutalidade do que pela astúcia. Eu vou torcer sinceramente para que isso aconteça, apesar de não concordar em nada com o Saddam Hussein.

Contra a máquina de fazer escritores da RBS (umtextopordia.blogspot.com)

Depois de escrever uns livros de receitas, etiqueta e boas-maneiras, Célia Ribeiro está lançando um livro de crônicas. Não li nada, nem vou ler. Aceita um conselho? Faça o mesmo.

Pedro (umtextopordia.blogspot.com)

Nunca vou esquecer a madrugada em que o meu moleque resolveu nascer. Faltavam quase dois meses pra fechar as quarenta semanas, mas ele já vinha tentando sair desde o sexto mês.

Era madrugada e a mãe dele acordou sentindo dores e coisa e tal. A gente correu para um hospital pensando em fazer um exame mas não tinha mais como segurar o moleque. Ele nasceu magro, pequeno e muito feio. Mas compensou tudo isso com o dia em que resolveu nascer e o signo. 2 de fevereiro, dia da padroeira de Porto Alegre. Aquário com ascendente em aquário. Era 97, eu tinha 25 anos e a certeza de que o Pedro seria um sujeito especial.

Até aquele dia eu nunca tinha dado colo para um recém-nascido. Mas o moleque se acomdou no meu colo e foi legal. Hoje ele é um cara enorme, mas continua se encaixando no meu braço quando está dormindo, cansado ou machucado. Quando ele tiver trinta anos eu acho que não vou mais poder dar colo como hoje, mas sei que ele vai continuar contando comigo sempre que precisar.

Aprendi um monte de coisas com e por causa do Pedro. Tipo fazer umas comidas, ler histórias infantis, inventar histórias infantis, brincar de carrinho, dinossauro, luta, espada, pega-pega e todas as outras coisas que a gente desaprende quando cresce. E acho que, reaprendendo as coisas de criança, consegui ser mais adulto. É uma dívida que tenho com o moleque.

Os últimos seis anos foram muito bons pra mim graças ao Pedro, apesar de muitas dificuldades e inseguranças. E acho que, na relação dele comigo, os primeiros seis anos dele também foram do caralho. Ele conheceu bandas de rock, histórias legais como a do Zumbi dos Palmares, aprendeu como é que se faz "tatuagem de agulha", desenhou tatuagens que estão nos meus braços, ganhou alguns brinquedos legais e deixou de ganhar outros tantos.

Apesar de não querer usar o "um texto por dia" para escrever nada que seja de verdade, como o meu filho vai morar em outra cidade, resolvi escrever sobre ele. Um texto pra ele guardar e saber como é importante na minha vida, mesmo que às vezes o lance de ser pai seja realmente difícil e eu pense "meu Deus, eu não consigo, eu quero desistir".

Meu moleque vai pra uma cidade maior, onde o aniversário dele não vai cair no dia do padroeiro da cidade e nunca mais vai ser feriado (olha a vantagem, os amiguinhos dele não vão estar fazendo feriadão na praia). Meu moleque vai para uma cidade onde ser aquário com ascendente aquário talvez não seja uma qualidade. Meu moleque vai para uma cidade que vai fazer a nossa querida Porto Alegre ficar pequena e sem graça demais. Meu moleque vai pra São Paulo.

Eu quero que ele seja feliz. O mais feliz que alguém pode ser morando em São Paulo. E que a gente consiga se ver, trocar correspondências, conversar por telefone e continuar sendo como somos: amigos, irmãos, parceiros, rivais, todos esses lados que só uma relação muito legal pode ter.

Vai, moleque. Todo mundo diz que a gente cria os filhos para o mundo. Acho que podia fazer mais por ti antes de te entregar pra ele. Mas acho, também, que não tem muita gente por aí que seja tão legal quanto tu.

E como eu sempre digo, não esquece que o pai te ama.

Minha sugestão para as nova fotinho em caixas de cigarro (umtextopordia.blogspot.com)

Foto de um sujeito cheirando as mãos.

O Ministério da saúde adverte:
O CIGARRO É UMA DROGA PORQUE DEIXA A MÃO FEDORENTA PRA CARAMBA.

Patrão/empregado (umtextopordia.blogspot.com)

- O negócio é o seguinte: a empresa está crescendo e precisamos de profissionais como você.

- Puxa, que legal.

- Como você sabe, o mercado não anda muito bom. Mas trabalhar aqui, levar a nossa empresa de volta ao lugar que ela sempre ocupou, isso vai dar um upgrade no seu currículo.

- Sem dúvida…

- Então o que eu te peço é o seguinte: um investimento na nossa empresa. Porque agora eu não posso pagar o que você vale, mas tenho certeza de que a gente logo corrige essa distorção.

- Eu acho que a gente pode tentar…

- Além do mais, anda difícil arranjar emprego. Há quanto tempo você está desempregado mesmo?

- Desempregado, desempregado, acho que fiquei um mês. Depois começaram a pintar alguns trabalhos temporários...

- Rá. E o dinheiro?

- É quase a mesma coisa que aqui.

- Mas sem a menor possibilidade de aumentar daqui a três meses.

- Isso é verdade.

- Negócio fechado?

- Negócio fechado.


Três meses depois



- Olha, Antônio Carlos. O seu trabalho aqui na empresa foi realmente surpreendente. Mas a situação continua complicada. Então, aquela nossa proposta inicial mudou um pouco.

- Como assim?

- A empresa entrou de novo numa fase de corte de gastos e, infelizmente, vamos ter que abrir mão da sua colaboração.

- Mas era eu quem estava investindo. Eu que baixei minha proposta pra colaborar com a empresa.

- Pois é. Nem sempre os investimentos dão certo…

Caranguejo (umtextopordia.blogspot.com)

É uma porra ter um carro. Parece que, por ter conseguido dinheiro pra comprar um, a gente é obrigado a dar esmola em sinaleiras. Mesmo quando a gente não tem um puto. Todos os pedintes atacam tentando fazer a gente se sentir culpado por estar dentro de um carro. Claro que alguns conseguem ser piores que os outros. É o caso do caranguejo.

Com certeza o caranguejo teve uma paralisia cerebral no pós-parto. Ele tem o lado direito paralisado e anda meio que se arrastando. É o típico sujeito que a gente olha pela primeira vez, sente pena e tem vontade de ajudar. Mas só até ele chegar perto do carro.

Na primeira vez em que vi o caranguejo, dei a única moeda que eu tinha para ele: 25 centavos. Ele ficou fazendo uns barulhos e se agarrando na porta do carro. Queria mais dinheiro, mas os 25 centavos eram tudo o que eu podia dar. Não daria cinco reais, muito menos dez, que eram as notas que eu tinha na carteira. Era aquela moeda de 25 e pronto. Ele ficou resmungando agarrado no meu carro, o sinal abriu e o filho da puta continuava ali.

Pedi pra soltar, os outros carros buzinavam atrás, mas ele continuava gemendo e resmungando. Arranquei e ele continuou agarrado no carro até que aquela perna meio bamba não aguentou e ele caiu.

Fui para o trabalho com aquela imagem do sujeito doente se esparramando no chão. A imagem e a culpa. O tombo foi feio, ele devia ter se machucado muito. Passei o dia pensando naquilo e voltei pra casa por outro caminho. Não queria vê-lo de novo. Não queria que ele se agarrasse no meu carro outra vez.

Mudei o trajeto para ir e voltar do trabalho só para evitar de encontrar com o caranguejo. Mesmo assim, não conseguia esquecê-lo.

Lembrava tanto daquele sujeito que, certa manhã, depois de ver que algumas fatias de pão, iogurtes, queijos, requeijão e margarinas estavam prestes a estourar os prazos de validade, juntei tudo em uma sacola e fiz o velho caminho para o trabalho. Ia entregar tudo para o caranguejo.

Olhei de longe e não o encontrei na sinaleira. Quando parei nela, o caranguejo apareceu. Veio arrastando a perna e dizendo um monte de coisas que eu não conseguia entender. Peguei a sacola com as comidas e alcancei pra ele. O caranguejo olhou pra dentro, mexeu nas coisas e ficou falando umas coisas que eu não conseguia entender. Foi daí que se agarrou na porta do carro de novo.

- Moeda. Uma moeda, tio.
- Mas eu te dei um monte de comida, rapaz.
- Quero moeda. Pra comprar comida. Tenho fome.
- Comida na sacola. Come o que tem na sacola.
- Não tem moeda?
- Não.
- Eu quero moeda. Dá moeda, tio.

A sinaleira abriu e o caranguejo estava agarrado no vidro do meu carro. Eu queria sair dali, mas não queria derrubá-lo de novo. Não queria machucar aquele sujeito que, definitivamente, não entendia nada de nada. Os carros atrás buzinavam. Quem conseguia sair pelo lado, passava me ofendendo – filho da puta, corno, barbeiro, sai da frente, palhaço, viado, careca.

Injustiça dupla. Eu tentei ajudar o sujeito e ele não entendeu. Eu não queria machucar o sujeito doente e todos os outros motoristas cagavam na minha cabeça.

Arranquei. O caranguejo não largou da porta do carro. Ele andou alguns passos até que a perna ruim falhou. Dessa vez ele continuou agarrado na porta e eu o arrastei por uns vinte ou trinta metros antes dele despencar no meio da rua.

Fiquei olhando pelo retrovisor e torcendo para que algum carro passasse por cima da cabeça dele. Pelo menos não teria que continuar fazendo o outro trajeto pra ir e vir do trabalho.

Gorete (umtextopordia.blogspot.com)

Vai que, de todos os homens do escritório, ela começou a olhar justamente pra mim. Ela era Gorete, a nova secretária do nosso presidente. Gorete tinha uns 23 anos e era a mulher mais linda que já tinha pisado na firma. Mais bonita até que a mulher do presidente, a Dona Lourdes. Loira com os cabelos na altura dos ombros e um rosto triangular lindo. Os olhos, que eram azuis muito claros, iluminavam o nariz fino, não muito grande, e a boca grande com lábios finos. Eu era o Raulzinho. Tinha sido boy quando a empresa foi fundada e, pela simpatia dos chefes, fui mantido até hoje, apesar de não saber fazer quase nada, tranformado num faz-tudo. Sou baixo, gordo, com quase cinquenta anos, meio fanho, muitas vezes indo trabalhar sem tomar banho por pura preguiça. Eu era o cara pra quem a Gorete olhava.

As informações das outras colegas eram meio desencontradas. Era casada, era solteira, tinha um filho, tinha uma filha, era séria, era uma puta. Tudo dependia de qual das garotas contava a história. Depois dos primeiros dias em que ela apenas olhava, começou a conversar comigo. No refeitório, na hora do almoço, sempre sentava na minha mesa. Além de bonita, era uma mulher agradável. Agradável demais. Começamos a pegar o ônibus juntos até o Centro pra conversar mais. Voltávamos de Cachoeirinha até Porto Alegre, onde nos separávamos e seguíamos nosso próprio caminho pra casa.

As diferenças entre Gorete e eu eram enormes. Depois do trabalho, eu ia para a casa dos meus pais, onde podia aproveitar todo o conforto de ainda ser filho. Ela, por outro lado, ia para a casa do filho, onde ainda enfrentava toda a dificuldade de ser mãe. Eu podia fazer o que quisesse: ler, ouvir música, sair com os amigos, transar com alguma ex-namorada. Ela se limitava a fazer o que o filho permitia: ver desenhos animados na TV, brincar de luta, ler histórias infantis. Sexo? Ah, o moleque não deixava.

Eu tinha medo de convidar a Gorete pra sair. Tinha medo de estar me enganando, tinha medo de que ela não gostasse de mim. Mas convidei e ela aceitou. Ela aceitou e nós fomos ao cinema, e eu a beijei antes dela fechar a porta do edifício. E no outro dia, voltamos do trabalho de mãos dadas no ônibus.

Virou namoro. Eu conheci o menino. Ele tinha uma série de problemas na escola. Não brincava, não conversava, só fazia o que a professora mandava. Era uma espécie de robô. No começo ele não falava comigo. Depois de um tempo, veio se aproximando. Meu namoro com Gorete seguia firme. Já fazíamos tudo que era possível para um casal de namorados com um filho pequeno. Transávamos do jeito que dava, sempre que tínhamos chance. Aproveitávamos as idas do moleque à casa da avó para andarmos nus pela casa, essas coisas. Mas me parecia que tudo que eu sentia pela Gorete não era correspondido.

Só que o garoto gostava tanto de mim que ela nunca teria coragem de desmanchar o namoro.

Eu já passava de quatro a cinco dias por semana na casa de Gorete até que o dia em que acordei de madrugada e ela não estava dormindo comigo. Estava mal acomodada numa cadeira da sala. No outro dia, acordei novamente e ela estava dormindo no mesmo lugar. Repeti a estratégia nos outros dias e bingo, era sempre a mesma coisa.

Até que resolvi esperar acordado pra tentar entender aquilo tudo. Gorete me deixou dormir, levantou da cama, foi até o quarto do filho e o beijou. Tive a nítida impressão de ouvir Gorete dizer:

- Dorme bem, meu anjo. Pela tua felicidade a mãe faz qualquer coisa. Até aguentar o chato do Raulzinho.

Quantos homens de 48 anos que estão comendo uma garota de 23, linda e gostosa, aguentariam ouvir isso e descobrir que estavam ali, aproveitando aquela verdadeira maravilha, única e exclusivamente pela necessidade do seu filho ter um pai? A pretensão de ainda ser bonito, gostoso, desejável, de ter um pau enorme e ereções fantásticas, tudo foi por água abaixo.

Pensei em surpreendê-la e dizer que nunca, nunca mais apareceria em sua casa. Que não levaria mais o moleque à escolinha, que nunca mais ia visitá-lo e que, antes de ir embora, diria pra ele nunca mais me chamar de pai. Entrei na sala pensando nisso. Mas ela me abraçou, me deu um beijo, ajoelhou, baixou minha cueca e começou a chupar meu pau. Chupou muito. Chupou até me fazer gozar. E engoliu tudo, tudo mesmo.

Foda-se o que ela sente. O menino precisa de um pai. Eu preciso de uma boa trepada. Fui até o banheiro, passei um papel higiênico no pau, voltei para o quarto e dormi. Ela ficou na sala, disse que ia ler um pouco.

Quando eu crescer (umtextopordia.blogspot.com)

Quando crescer eu
nunca mais vou ter espinhas,
vou trabalhar
e ter uma casa só minha.
Vou ter mulher,
um filho e uma filha.
Ser respeitado
como um bom pai de família.

Quando eu crescer
vou ter cadeira no Olímpico
Vou ser casado
com uma mulher compreensiva.
Vou ter conta em banco
e cheque especial.
Mas não tem problema,
vai estar sempre positiva.

Quando crescer eu
vou ser muito admirado
por meus vizinhos
e colegas do meu lado
Bonitão e cheio de mulheres
vou escolher
entre Robertas e Micheles.

Ansiosamente como um
preso aguarda o indulto,
eu conto o tempo que falta
para me tornar adulto.

Mas eu cresci
e continuo com espinhas.
Eu tenho emprego,
mas não tenho uma família.
Moro com meus pais
E não como ninguém
Virei adulto
Mas ainda não sou alguém.


Isto um dia foi uma letra de música. Escrevi em 2000 ou 2001. Talvez eu já tenha crescido um pouco desde lá.

No escuro (umtextopordia.blogspot.com)

- Pelo amor de Deus, não faz isso comigo.
- Tu não obedece, agora vai ficar de castigo, fechado no quarto escuro.
- Mas eu tenho medo.
- Por isso que é castigo. Se tu gostasse, eu inventava outra coisa.
- Eu prometo que não faço mais.
- Daí não vai ficar de castigo de novo.
- Mas eu tô prometendo.
- Mas agora tu já fez bobagem. E cala a boca.

Eu tento chorar, tento fugir, tento trancar a respiração e ficar roxo, mas a mãe não vai me perdoar. Ela me atira dentro do quarto e ameaça de me bater se eu acender a luz. Ainda tava na novela das seis, por isso eu sei que vou ficar muito tempo no escuro.

No escuro eu começo a chorar e não enxergo nada. Ninguém enxerga nada. Mas eu sei tudo que tem no escuro. No escuro tem fantasmas, no escuro tem vampiros, no escuro é cheio de monstros. Vou andando bem devagarinho até encontrar a minha cama. Se eu deitar e dormir, posso sonhar que é de dia. Se eu ficar acordado, vou ficar no escuro com todos os monstros que moram nesse quarto.

Vou pra baixo das cobertas e tapo bem a cabeça. Os monstros enxergam no escuro, mas podem pensar que isso é só um monte de cobertas desarrumadas. Tenho que tapar meu pescoço pra nenhum vampiro me pegar. Tenho que parar de chorar, porque os fantasmas e os monstros podem ouvir. Não tenho sono. Não consigo ter sono porque tenho muito medo. Se meu pai soubesse que eu morro de medo do escuro, ia debochar de mim e até me dar uma surra. Tenho medo do meu pai também.

Meu Deus, o cachorro tá latindo no pátio. Deve ter visto algum monstro, vampiro ou fantasma. Os cachorros sentem o cheiro dessas coisas. Eu tenho que parar de tremer e de chorar. Eu tenho que ser homem. Homem não treme e nem chora. Não chora nem quando se machuca muito.

No escuro eu não sei de onde os barulhos vêm. Esse barulho de agora pode ser a minha mãe fazendo comida, mas também podem ser as correntes que algum fantasma carrega. E eu não consigo parar de chorar e de tremer. Eu não consigo me esconder dos fantasmas.

Não sei se no escuro é quente. Tá tão quente aqui que eu nem consigo respirar. Pode ser que um diabo tenha entrado no meu quarto e esteja só esperando eu tirar a cabeça pra fora das cobertas pra me levar direto pro inferno. Ainda mais que a mãe me disse que eu sou tão mau, mas tão mau, que com certeza eu vou pro inferno quando morrer. Eu acho que vou morrer aqui no escuro. Se eu tirar a cabeça debaixo das cobertas pra respirar só um pouquinho, será que eles vão me ver? Não, eu posso ser mais rápido que todos os monstros. Mas espera, se eu abrir só um buraquinho nas cobertas, talvez eu consiga respirar melhor sem ninguém me ver.

Faço um espacinho pro ar entrar e funciona. Já tô conseguindo respirar muito melhor agora. E nenhum monstro me arrancou do meu esconderijo embaixo das cobertas. Queria saber que horas são, queria que o pai chegasse e me tirasse do castigo. Mas ele nunca chega cedo e nunca me tirou do castigo. Escuto a música do Jornal Nacional. Já tá quase na hora de dormir. Mas eu tô com tanto medo que não vou conseguir.

Droga. Chorei tanto que fiquei com soluço. Se algum monstro, fantasma ou vampiro ainda estiver aqui no quarto, dessa vez eu não escapo. Tapo a boca com o travesseiro, mas não consigo fazer todo o barulho parar.

Eu tenho que dormir. Eu tenho que dormir. Se um monstro me pegar dormindo, não tem problema. Quando a gente dorme não sente dor e eles podem me arrancar os meus pedaços que eu não vou nem sentir nada. Ia até ser bom se eles me pegassem dormindo. Amanhã, quando a mãe viesse abrir a porta do quarto, ia encontrar os meus pedaços espalhados pelo quarto e ia se arrepender muito de ter me deixado de castigo no escuro.

Ou ia achar melhor, porque vive brigando comigo. Mas se eles me matassem mesmo, eu ia virar um fantasma e ia fazer muita maldade pra minha mãe. Daí sim ela ia se arrepender de ser tão má comigo.

A noite mais quente do ano (umtextopordia.blogspot.com)

Ela pegava meu pau, apertava minhas bolas e gemia. Gemia alto, fazia muito barulho para o que a gente tava fazendo. Eu aproveitava pra enfiar a mão por dentro do shortinho dela, apertar a bunda, mexer nos pentelhos. Até que ela disse não, é melhor parar, eu não posso fazer isso com o meu namorado.

Porra, eu tava em casa ouvindo futebol no rádio quando ela me ligou. Insistiu pra eu ir na casa dela, que ficava do outro lado da cidade. Só fui porque achei que ela queria me dar, e eu era fissurado nela. A cara era feia, mas o rabo, as pernas e o peito eram legais pra caralho. Como era pra ser só pra uma foda, até que valia pegar dois ônibus.

O papo da mina era completamente absurdo. Tinha pensado que ia conseguir trair o namorado que estava na praia, mas não podia. Era apaixonada por ele. E eu, que vim de Ipanema até o Jardim Lindóia, tinha sido muito importante. Afinal, eu já tinha ficado com ela umas vezes, ela tinha interesse por mim. Se nem assim ela conseguia trair o namorado, era amor de verdade. Eu não tava com o menor saco de questionar. Beijar na boca, levar um vagabundo pra casa, agarrar o pau. Se isso não é trair, meus conceitos estavam meio ultrapassados.

Daí ela queria continuar de agarramento. Eu não queria mais. Vamos dormir, eu disse pra ela. Foi daí que começou a segunda parte do drama. Era a noite mais quente dos últimos tempos e a gente tava dividindo uma cama de solteiro. O ventilador, definitivamente, não dava conta. E aquela mina filha da puta, que não quis me dar, ficou esfregando o rabo enorme no meu pau e dormindo. Tive vontade de bater uma punheta e gozar na cara da cadela só pra sacanear. Pensei melhor. Não valia o desperdício de porra.

Tudo já era suficientemente ridículo até meu siso começar a doer. Nunca doía. Só uma vez por ano. Justo na noite mais quente e mais frustrante, aquela dor fodida resolveu aparecer. Eu suava, me equilibrava na cama de solteiro com uma mina que não era nada mais que um rabo e uns peitos e sentia aquela dor. Tudo muito surreal. O tempo não passava e eu só queria que amanhecesse de uma vez, porque naquela hora eu não conseguiria pegar um ônibus até o Centro e, muito menos, outro até Ipanema.

Quando amanheceu eu tava completamente destruído. Olheiras, dor de cabeça, o saco inchado, a boca doendo. A mina veio toda romântica pro meu lado, mas eu disse desculpe, tenho que me mandar.

Tava descendo no elevador com dois velhos, bem velhos. Apesar dos óculos escuros pra disfarçar as olheiras, acho que a minha cara tava tão horrível que eles não paravam de me olhar. Porra, tio, aquela mina do 703 fode feito uma macaca. E o velho ficou me olhando sem jeito. Foda-se. Eu só queria chegar em casa logo e tomar um remédio pra porra do meu siso.

A máquina de moer cérebros (umtextopordia.blogspot.com)

Era um tempo difícil de arranjar emprego. Há mais de um ano que ele não conseguia nada fixo em lugar nenhum. Trabalhava como temporário cinco meses num lugar, três em outro, ficava sem trabalho nenhum pelo mesmo tempo. Faltava comida em casa, faltava grana pra pagar as contas, o nome estava no SERASA, no SPC, no Banco Central, no mercadinho da esquina. Onde pudesse fazer uma dívida, fazia mesmo. Já não vivia. Sobrevivia.

Era mais um dia sem nada pra fazer quando o telefone tocou. Um sujeito se identificou, disse que tinha boas recomendações e o chamou para uma entrevista. A empresa estava destruída pela crise financeira que tinha atacado o Brasil e acumulava prejuízo em cima de prejuízo nos últimos 12 meses. A entrevista até não foi tão desagradável como as entrevistas costumam ser. Mesmo assim, o quase patrão não bateu martelo. Ficou de ligar nos próximos dias. Enquanto isso, algum biscate e uma grana emprestada dos irmãos ajudavam na sobrevivência.

Já não tinha muita esperança de conseguir o trabalho, nem estava muito animado para conseguir. Pensando friamente sobre a conversa de uns dias antes, chegou à conclusão de que trabalhar naquela empresa podia, no máximo, ser uma merda. Mas o maldito telefone tocou e o sujeito da entrevista o chamou para trabalhar.

A proposta era ficar três meses em teste, porque os últimos a ocuparem a vaga eram muito ruins e foram mandados embora. A grana era o dobro do que ele vinha tirando dos irmãos, mas metade do que costumava receber quando trabalhava em lugares decentes. Por isso aceitou, mesmo que não quisesse. Mesmo sabendo desde antes de começar que ia sofrer. Mesmo com a certeza de que não conseguiria fazer um bom trabalho.

Já no primeiro dia, desconfiou de alguma coisa. Os colegas pouco falavam, pouco riam. Só trabalhavam. Quando viu a lista de trabalhos para o dia é que ele entendeu a tristeza os colegas. E deu a largada numa maratona: trabalhou até tarde no primeiro, no segundo, no terceiro, no quarto, no quinto e em todos os outros dias. Tempo de economia, poucos funcionários fazendo a função de muitos, recebendo um salário miserável e sendo cobrados como se recebessem uma fortuna.

Mas o pior não era isso. O pior era a sensação de vazio dentro da cabeça. No final da primeira semana, não falava, não sorria. Chegava no horário que o patrão cobrava com a fúria de um capitão-do-mato e trabalhava, trabalhava, trabalhava. Um trabalho repetitivo como apertar parafusos numa indústria. De repente, não pensava mais. Aquela porra conseguiu moer seu cérebro. Exatamente como tinha feito com todos os outros que trabalhavam lá.