segunda-feira, 25 de outubro de 2010
Adultos
Meu pai e minha mãe são adultos. Eu não entendo direito as coisas que eles fazem. Agora tá dando a maior confusão aqui em casa por causa dessas coisas que eles fazem e eu não entendo. A mãe tá gritando, o pai tá telefonando pro médico, a maior confusão. Começou quando eu achei um cachorrinho na rua. Bom, isso faz tempo. Mas daí, quando cheguei em casa, deu a maior briga: a mãe ficou muito braba, me deu um xingão, disse que não podia gastar dinheiro pra criar um cachorrinho, que não tinha espaço pra ele. Eu pedi pra ficar com ele, disse que ia levar pra passear, dava banho e que eu não me importava que ele dormisse na minha cama. A mãe não deixou nem assim. Então eu fugi de casa e fui me esconder na casa do meu amigo Paulinho com o cachorrinho junto. Quando o pai chegou do trabalho, a mãe disse pra ele o que tinha acontecido e ele ficou muito brabo. Não sei como ele descobriu que eu tava escondido na casa do Paulinho com o cachorrinho e foi lá nos buscar. Daí ele pegou o carro, o cachorrinho e eu e saiu andando. Quando a gente tava bem longe de casa, ele parou o carro e me disse - deixa esse cachorro de merda aí! Eu expliquei tudinho pra ele. Deixa, pai, eu disse, vou cuidar dele bem direitinho, divido a minha comida com ele, dou banho e não me importo que ele durma comigo. Mas o pai disse - eu não quero mais um pra dar trabalho em casa. Tive que largar o cachorrinho naquele lugar longe e nunca mais vi ele. Eu chorei antes de dormir naquela noite. E no outro dia também. Até que o Paulinho apareceu lá em casa. Ele me contou que a mãe dele tinha ligado pra minha mãe e dedado que eu tava lá na casa dele. Por isso que o pai me encontrou. Disse mais - a essa hora aquele cachorrinho já deve até ter morrido atropelado, e eu comecei a chorar de novo. O que eu tinha entendido dessa confusão é que ninguém mais podia morar lá em casa porque ia dar incomodação e despesa para os meus pais. Passou um tempo e a mãe apareceu toda feliz em casa. Ela gritava - Marquinhos, a mamãe tá esperando um nenezinho! Mas a senhora não disse que não tinha dinheiro nem espaço pra criar um cachorrinho, eu perguntei, como é que vai ter um nenê? Isso é diferente, a mãe me respondeu. Daí ela começou a ligar pra um monte de gente. Primeiro para o pai, que ficou feliz. Depois ela ligou para as minhas duas vós, falou com as minhas tias, meus tios, os tios dela e do pai, pras mulheres que trabalham com ela. Ela ainda foi nos apartamentos dos vizinhos contar que estava esperando um nenê. Naquele dia o pai até chegou em casa mais cedo e trouxe roupinhas de nenê e um carrinho bem legal pra mim. Daí eu perguntei - pai, agora que a gente tá com dinheiro e espaço, a mãe não podia esperar um cachorrinho em vez de um nenê? Ele riu e disse que era diferente, que nem a mãe tinha dito, mas eu continuava sem entender por que era diferente. Quer dizer, até sabia, porque um cachorrinho é muito mais legal que um nenê. Mas já que o pai e a mãe preferiam um nenê e eles mandavam em mim, eu tinha que aceitar um nenê. Primeiro a mãe não tinha barriga nenhuma, mas ficava enjoada e vomitava o tempo inteiro - mãe, você vai vomitar o nenê hoje ou ainda vai demorar pra ele nascer? - Marquinhos, a gente não vomita um nenê- a mãe me disse. E não vomita mesmo, porque de um dia pro outro ela parou de vomitar e a barriga dela começou a crescer. Todo dia a barriga dela crescia e eu fiquei com medo que fosse explodir. Perguntei pra ela se era assim que os nenês nasciam, quando a barriga da mãe explodia, e como é que fazia pra consertar a barriga, mas ela disse que também não era assim. E enquanto a barriga da mãe crescia, o pai ia mudando tudo no meu quarto. Botou um bercinho, pintou a parede, até riscou a parede - pai, o que que você riscou na parede? - é o nome da sua irmãzinha, meu filho: Vanessa - mas pai, como é que o senhor sabe que é uma irmãzinha se o nenê nem saiu da barriga da mãe, eu perguntei e o pai me mandou brincar na sala porque ele não tava com paciência de explicar - pai, se era pra vir uma irmãzinha, eu continuava preferindo um cachorrinho, eu disse e ele não deu a menor bola. Foi daí que eu entendi que o pai tinha mudado todo o meu quarto porque agora era a minha irmãzinha que ia dormir nele. Fiquei pensando se eu ia dormir naquele quarto de menina, mas não perguntei nada porque senão eu ia acabar levando umas palmadas. Ruim nessa história de irmãzinha é que ninguém me explicava nada. Até que um dia a mãe ganhou a nenê e eu ganhei um quebra-cabeças de 100 peças e uma barra de chocolate grandona e tive que ir dormir na casa da vó. A vó que me explicou que a mãe tinha que descansar, por isso que tinha que ficar no hospital e depois ela, o pai e a minha irmãzinha iam pra casa e eu ia também. Pedi pra ver a mãe e a nenê no hospital, mas a vó disse que eu era muito pequeno e que não iam me deixar entrar - deixa, vó, eu tô morrendo de saudade da mãe - e ela disse que depois de amanhã eu ia ver as duas. O tempo passou devagar até o pai ir me buscar na casa da vó e me levar pra casa - vamos comprar um presente pra tua irmã, ele disse - já sei, vamos comprar um cachorrinho pra ela, eu falei e ele ficou furioso - eu já disse que não quero uma merda de cachorro em casa, Marquinhos, ainda mais agora que a gente tem um nenê. Eu chorei baixinho e o pai disse que não precisava chorar, que ele não tava brabo comigo e a gente foi numa loja grande do Shopping e comprou um presente pra minha irmã e uma bola de futebol pra mim. Quando a gente chegou em casa eu corri pra abraçar a mãe, mas a Vanessa tava mamando e não deixou um espacinho pra eu abraçar a mãe e ir no colo dela - mãe, me dá colo? - deixa disso, Marquinhos, a tua irmãzinha tá mamando agora, e você já tá grande demais pra ficar no colo. Agora eu era grande pra ficar no colo, mas antes ela me pegava e me chamava de nenê - quando é que eu vou poder brincar com a Vanessa mãe, eu perguntei e ela me disse que eu não podia nem chegar perto do nenê porque ela ainda era muito pequena e eu podia acabar machucando a coitadinha. Daí eu esperei ela dormir e quando a mãe botou no berço eu joguei minha bola de futebol pra ver se ela sabia pegar. A bola caiu em cima da Vanessa e ela começou a chorar - calma nenezinho, eu disse, se você não quer jogar bola a gente não joga, mas ela continuou chorando e a mãe e o pai chegaram no quarto e viram que a culpa era minha. A mãe veio correndo, pegou a Vanessa no colo e o pai me pegou pela orelha e me deu umas palmadas. Eu sabia que ia acabar apanhando por causa da minha irmãzinha, e jurei que nunca mais ia brincar com ela. Na minha hora de dormir, a Vanessa já tava deitadinha, mas foi só eu começar a dormir que ela começou a fazer uns barulhinhos. Olhei e ela tinha vomitado. Fui até o quarto da mãe e do pai, mas eles tavam dormindo. Voltei pro quarto e ela tinha vomitado mais um pouquinho - porcalhona, eu disse, e dei um tapa nela. Daí a Vanessa começou a chorar e eu pensei que ia acabar levando mais umas palmadas do pai, então eu tapei a carinha dela com o travesseiro - calma, nenê, eu disse, eu não vou te bater mais, mas ela não entendeu e começou a mexer os bracinhos e as perninhas com força. Se ela não parasse, o pai e a mãe iam acordar e eu ia apanhar de novo. E eu fui ficando com brabo com a Vanessa, porque eu apanhava por causa dela, e não pude ficar com meu cachorrinho mas tinha que dividir meu quarto com ela, e porque quando eu quis comprar um cachorrinho pra ela o pai não deixou. Daí eu pensei que podia fazer com ela a mesma coisa que eu fazia com o Paulinho quando a gente brigava e comecei a apertar o pescocinho dela - fica quietinha que nem o Paulinho fica quando a gente briga, Vanessa, e eu paro de apertar o teu pescocinho. Mas ela era teimosa e não parou e eu tive que apertar o pescocinho dela cada vez mais forte. Até que ela entendeu e ficou quietinha. Agora eu podia dormir e a mãe e o pai iam ficar orgulhosos quando vissem que eu sabia cuidar da Vanessa direitinho. E amanhã mesmo eu ia pedir um cachorrinho de novo.
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