segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Expresso da Loucura

O nome do bairro onde eu moro é Nonoai. Nunca pensei no que isso quer dizer, deve ser alguma coisa em Tupi. Talvez seja o nome que os nativos davam para o cu, porque é isso que meu bairro é. Um cu. Pior do que morar no bairro é morar na Avenida com o mesmo nome. Tem movimento pra caramba, porque é um dos caminhos pra se chegar da Zona Sul no Centro. E passa ônibus, passa lotação, passa táxi, passa viatura da brigada, passa carro, passa moto, todos fazendo um barulho do caralho no ouvido da gente. Mas eu moro na Avenida Nonoai desde que nasci, e não imagino como seja morar em outro lugar. Não sei se tem alguma relação com o barulho dos carros o tempo inteiro, mas sempre fui quieto, sempre preferi ficar em silêncio. Nunca tive muitos amigos no bairro. Os poucos que tinha não valiam sair de casa pra uma visita, um futebol, uma brincadeira. Gostava mesmo de ficar pelo meu quarto, ler, ouvir música, ver TV, olhar aqueles milhares de carros passando pela minha janela. Uma das coisas boas de ver da janela era um maluquinho que corria pela rua no meio dos carros. O cara corria até não sei onde e voltava, sempre na mão certa, sempre respeitando os sinais e placas de trânsito, sempre num trote curto. Ele fazia a mesma coisa desde que eu era bem pequeno. Cresci, ele envelheceu e continuou fazendo a mesma coisa, e eu sempre vendo. Nunca fui de perguntar nada pra ninguém, mas um dia eu peguei um táxi na esquina de casa. Num destes pontos de táxi onde ficam sempre os mesmos carinhas – carinhas que sabem de tudo que acontece na vizinhança. No caminho, passamos pelo louquinho corredor. Falei pro motorista que eu via aquele sujeito correndo desde que eu era criança. Ele me explicou que o cara achava que era um ônibus, um motorista de ônibus, e que passava o dia todo indo e voltando da Praça Guia Lopes até o Centro. Ri na hora, mas fiquei pensando no coitado o resto do dia. Quer dizer, eu achava que ele era um coitado, porque, pra ele, tava tudo bem. Poderia fazer um monte de piadas sobre ele, do tipo será que dorme ou só estaciona e desliga o motor, bebe água ou gasolina, mas não achei graça em nada. Comecei a reparar ainda mais nele, anotar os horários em que ele passava pela parada onde eu pegava o ônibus de verdade. Queria ajudar o sujeito de alguma forma. Um dia resolvi fazer um teste. Ele vinha naquela corrida pelo meio da rua e eu fiz o sinal de chamar o ônibus. Ele parou e ficou me olhando. Estendi uma nota de dez reais e ele me respondeu que não tinha troco. Fechou a porta e arrancou. O resto das pessoas na parada do ônibus ficou rindo. Eu fiquei com raiva deles. Filhos da puta, normais, se divertindo pra caralho com a doença dos outros. No outro dia, estava com o dinheiro da passagem certinho na mão. Quando ele apontou correndo, fiz sinal. O homem-ônibus parou e me encarou sem paciência. Ele lembrava de mim e disse que se eu não tivesse o dinheiro certo da passagem eu não devia ficar parando ele, que tinha horário e levava bronca do fiscal no Centro quando se atrasava nas viagens. Estendi o dinheiro certinho pra ele, que me mandou subir. Fiquei atrás e o segui, trotando, por umas três ou quatro paradas. Não podia ficar correndo pela rua atrás de um louco. Não que tivesse algum problema em alguém achar que eu também não era normal, mas por que ia chegar no trabalho suado e atrasado. Pedi pra descer e ele me recomendou que não conversasse com ele, porque sempre tinha algum fiscal que podia ver e isso dava a maior confusão depois. Me desculpei e desci. Quem estava na parada não entendeu, azar. Tinha conseguido fazer o que queria: dar uma grana para o sujeito. Se eu conseguisse andar duas ou três paradas com ele todos os dias, podia ajudar o coitado a comer um pão, tomar um refri, essas coisas. E foi isso que eu comecei a fazer. Ia pra parada do ônibus, fazia sinal pro meu amigo ônibus, pagava a passagem e descia uma ou duas paradas depois. Num dia em que ele estava mais tranquilo, me falou que seria muito melhor eu fazer o trajeto caminhando, que andar fazia bem pra saúde e que eu não devia gastar o dinheiro de uma passagem num trajeto que dava pra fazer caminhando. Agradeci o conselho, mas continuei andando com ele todos os dias em que não chovia. Quando chovia ele não me deixava entrar no ônibus de guarda-chuva aberto, pra não incomodar os outros passageiros, daí eu não insistia. Não podia ficar me molhando de graça só pra ajudá-lo. Até que um dia ele não passou pela parada. Era segunda, eu fui trabalhar e não o vi. Nem durante o resto da semana. Passei um tempão do sábado na janela do meu quarto, esperando o ônibus passar. Nada. Desci e fui até o ponto de táxi porque lá eles deviam saber o que tinha acontecido com o louquinho. Os motoristas que estavam ali não sabiam de nada e o sujeito que me explicou quem era o louco não estava lá. Voltei mais tarde e encontrei o cara que eu conhecia conversando com os outros taxistas. Taxistas carregam muita gente todos os dias, e raramente lembram de um passageiro. O cara não lembrava de mim, é claro. Não tinha problema, ele não precisava me conhecer pra dizer o que sabia: o louquinho estava hospitalizado, tinha sofrido um acidente num cruzamento. Ele tentou passar no sinal amarelo e um carro arrancou muito rápido e o atropelou. Bateu a cabeça no asfalto, tava mal, parecia que ia morrer. Como a vida não costuma perdoar os fudidos, ele morreu mesmo. Fiquei mais triste com isso do que quando minha vó morreu, velhinha e cansada, com quase noventa anos. Aquele cara era ainda novo, forte e, pra completar, eu tinha visto ele muito mais vezes do que a vó durante a minha vida toda. Comecei a pensar que o bairro, que já era sem graça, ia ficar pior ainda. Perdemos uma linha de ônibus. Quem é que ia fazer a linha Guia Lopes-Centro, o Expresso da Loucura, o único ônibus que passava pela Nonoai e não estava lotado? Quando o sábado chegou, caminhei da Guia Lopes até o Centro e voltei. Era uma puxada forte. No domingo, fiz o trajeto duas vezes. Quando fui dormir, minhas pernas doíam. Na segunda eu acordei mais cedo que de hábito, tomei meu café e me despedi dos meus pais. Eles se despediram de mim como se eu fosse chegar de volta à noite. Nunca voltei. Agora, eu tenho uma linha de ônibus pra cuidar.

Um comentário:

Luis Gustavo Coutinho disse...

Rapaz, excelente o conto. Totalmente adapatável para um curta-metragem. Espero que a treta que estava rolando contigo no Twitter tenha acabado. Paz para você e para o seu filhote. Abs!