- Pelo amor de Deus, não faz isso comigo.
- Tu não obedece, agora vai ficar de castigo, fechado no quarto escuro.
- Mas eu tenho medo.
- Por isso que é castigo. Se tu gostasse, eu inventava outra coisa.
- Eu prometo que não faço mais.
- Daí não vai ficar de castigo de novo.
- Mas eu tô prometendo.
- Mas agora tu já fez bobagem. E cala a boca.
Eu tento chorar, tento fugir, tento trancar a respiração e ficar roxo, mas a mãe não vai me perdoar. Ela me atira dentro do quarto e ameaça de me bater se eu acender a luz. Ainda tava na novela das seis, por isso eu sei que vou ficar muito tempo no escuro.
No escuro eu começo a chorar e não enxergo nada. Ninguém enxerga nada. Mas eu sei tudo que tem no escuro. No escuro tem fantasmas, no escuro tem vampiros, no escuro é cheio de monstros. Vou andando bem devagarinho até encontrar a minha cama. Se eu deitar e dormir, posso sonhar que é de dia. Se eu ficar acordado, vou ficar no escuro com todos os monstros que moram nesse quarto.
Vou pra baixo das cobertas e tapo bem a cabeça. Os monstros enxergam no escuro, mas podem pensar que isso é só um monte de cobertas desarrumadas. Tenho que tapar meu pescoço pra nenhum vampiro me pegar. Tenho que parar de chorar, porque os fantasmas e os monstros podem ouvir. Não tenho sono. Não consigo ter sono porque tenho muito medo. Se meu pai soubesse que eu morro de medo do escuro, ia debochar de mim e até me dar uma surra. Tenho medo do meu pai também.
Meu Deus, o cachorro tá latindo no pátio. Deve ter visto algum monstro, vampiro ou fantasma. Os cachorros sentem o cheiro dessas coisas. Eu tenho que parar de tremer e de chorar. Eu tenho que ser homem. Homem não treme e nem chora. Não chora nem quando se machuca muito.
No escuro eu não sei de onde os barulhos vêm. Esse barulho de agora pode ser a minha mãe fazendo comida, mas também podem ser as correntes que algum fantasma carrega. E eu não consigo parar de chorar e de tremer. Eu não consigo me esconder dos fantasmas.
Não sei se no escuro é quente. Tá tão quente aqui que eu nem consigo respirar. Pode ser que um diabo tenha entrado no meu quarto e esteja só esperando eu tirar a cabeça pra fora das cobertas pra me levar direto pro inferno. Ainda mais que a mãe me disse que eu sou tão mau, mas tão mau, que com certeza eu vou pro inferno quando morrer. Eu acho que vou morrer aqui no escuro. Se eu tirar a cabeça debaixo das cobertas pra respirar só um pouquinho, será que eles vão me ver? Não, eu posso ser mais rápido que todos os monstros. Mas espera, se eu abrir só um buraquinho nas cobertas, talvez eu consiga respirar melhor sem ninguém me ver.
Faço um espacinho pro ar entrar e funciona. Já tô conseguindo respirar muito melhor agora. E nenhum monstro me arrancou do meu esconderijo embaixo das cobertas. Queria saber que horas são, queria que o pai chegasse e me tirasse do castigo. Mas ele nunca chega cedo e nunca me tirou do castigo. Escuto a música do Jornal Nacional. Já tá quase na hora de dormir. Mas eu tô com tanto medo que não vou conseguir.
Droga. Chorei tanto que fiquei com soluço. Se algum monstro, fantasma ou vampiro ainda estiver aqui no quarto, dessa vez eu não escapo. Tapo a boca com o travesseiro, mas não consigo fazer todo o barulho parar.
Eu tenho que dormir. Eu tenho que dormir. Se um monstro me pegar dormindo, não tem problema. Quando a gente dorme não sente dor e eles podem me arrancar os meus pedaços que eu não vou nem sentir nada. Ia até ser bom se eles me pegassem dormindo. Amanhã, quando a mãe viesse abrir a porta do quarto, ia encontrar os meus pedaços espalhados pelo quarto e ia se arrepender muito de ter me deixado de castigo no escuro.
Ou ia achar melhor, porque vive brigando comigo. Mas se eles me matassem mesmo, eu ia virar um fantasma e ia fazer muita maldade pra minha mãe. Daí sim ela ia se arrepender de ser tão má comigo.
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