É uma porra ter um carro. Parece que, por ter conseguido dinheiro pra comprar um, a gente é obrigado a dar esmola em sinaleiras. Mesmo quando a gente não tem um puto. Todos os pedintes atacam tentando fazer a gente se sentir culpado por estar dentro de um carro. Claro que alguns conseguem ser piores que os outros. É o caso do caranguejo.
Com certeza o caranguejo teve uma paralisia cerebral no pós-parto. Ele tem o lado direito paralisado e anda meio que se arrastando. É o típico sujeito que a gente olha pela primeira vez, sente pena e tem vontade de ajudar. Mas só até ele chegar perto do carro.
Na primeira vez em que vi o caranguejo, dei a única moeda que eu tinha para ele: 25 centavos. Ele ficou fazendo uns barulhos e se agarrando na porta do carro. Queria mais dinheiro, mas os 25 centavos eram tudo o que eu podia dar. Não daria cinco reais, muito menos dez, que eram as notas que eu tinha na carteira. Era aquela moeda de 25 e pronto. Ele ficou resmungando agarrado no meu carro, o sinal abriu e o filho da puta continuava ali.
Pedi pra soltar, os outros carros buzinavam atrás, mas ele continuava gemendo e resmungando. Arranquei e ele continuou agarrado no carro até que aquela perna meio bamba não aguentou e ele caiu.
Fui para o trabalho com aquela imagem do sujeito doente se esparramando no chão. A imagem e a culpa. O tombo foi feio, ele devia ter se machucado muito. Passei o dia pensando naquilo e voltei pra casa por outro caminho. Não queria vê-lo de novo. Não queria que ele se agarrasse no meu carro outra vez.
Mudei o trajeto para ir e voltar do trabalho só para evitar de encontrar com o caranguejo. Mesmo assim, não conseguia esquecê-lo.
Lembrava tanto daquele sujeito que, certa manhã, depois de ver que algumas fatias de pão, iogurtes, queijos, requeijão e margarinas estavam prestes a estourar os prazos de validade, juntei tudo em uma sacola e fiz o velho caminho para o trabalho. Ia entregar tudo para o caranguejo.
Olhei de longe e não o encontrei na sinaleira. Quando parei nela, o caranguejo apareceu. Veio arrastando a perna e dizendo um monte de coisas que eu não conseguia entender. Peguei a sacola com as comidas e alcancei pra ele. O caranguejo olhou pra dentro, mexeu nas coisas e ficou falando umas coisas que eu não conseguia entender. Foi daí que se agarrou na porta do carro de novo.
- Moeda. Uma moeda, tio.
- Mas eu te dei um monte de comida, rapaz.
- Quero moeda. Pra comprar comida. Tenho fome.
- Comida na sacola. Come o que tem na sacola.
- Não tem moeda?
- Não.
- Eu quero moeda. Dá moeda, tio.
A sinaleira abriu e o caranguejo estava agarrado no vidro do meu carro. Eu queria sair dali, mas não queria derrubá-lo de novo. Não queria machucar aquele sujeito que, definitivamente, não entendia nada de nada. Os carros atrás buzinavam. Quem conseguia sair pelo lado, passava me ofendendo – filho da puta, corno, barbeiro, sai da frente, palhaço, viado, careca.
Injustiça dupla. Eu tentei ajudar o sujeito e ele não entendeu. Eu não queria machucar o sujeito doente e todos os outros motoristas cagavam na minha cabeça.
Arranquei. O caranguejo não largou da porta do carro. Ele andou alguns passos até que a perna ruim falhou. Dessa vez ele continuou agarrado na porta e eu o arrastei por uns vinte ou trinta metros antes dele despencar no meio da rua.
Fiquei olhando pelo retrovisor e torcendo para que algum carro passasse por cima da cabeça dele. Pelo menos não teria que continuar fazendo o outro trajeto pra ir e vir do trabalho.
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