domingo, 18 de julho de 2010

A mãe virou robô

1. Quando a gente é criança, a vida é muito boa. Eu acordo, tomo café, como pão e brinco até a hora do almoço. Daí eu almoço, olho TV. Brinco mais um pouco e me acomodo no colo da minha mãe pra ver Sessão da Tarde. A mãe e eu gostamos dos filmes que têm lutas, ou das comédias, nunca dos filmes “de cantoria”, que é como a mãe chama os musicais. Mais do que dos filmes, eu gosto mesmo é de ficar no colo da mãe. Pode chover, trovoar, pode até entrar um morcego em casa como já entrou uma vez: no colo da mãe eu não tenho medo.

2. Meu pai é jornalista. Ele trabalha até tarde no jornal – sai de casa de manhã e só volta quando a gente está dormindo. No sábado ele vem pra casa mais cedo. No domingo ele tem folga. O pai é legal e eu gosto dele. Ele me conta histórias do Grêmio e eu adoro o Grêmio por causa do meu pai. Quando eu crescer, vou querer ser igual a ele. E vou casar com uma mulher igual à minha mãe.

3. Minha irmã mais velha é muito legal. Ela lê histórias, me ajuda no banho, faz sanduíche. Ela vai bem na escola e ajuda na casa.

4. Eu me dou bem com minha irmã do meio. Mais ou menos bem. Ela cria umas encrencas na casa e briga muito, mas a gente brinca mesmo assim. E é divertido.

5. A minha irmã mais nova faz tudo melhor do que a gente. Ela é a mais inteligente da casa e ainda sabe um jeito de pôr os pés atrás da cabeça. O pai diz que ela vai ser bailarina e sempre fala que ela é inteligente. A gente brinca e briga muito, porque ela era o nenê da casa até eu nascer, e agora tem ciúme de mim.

6. Às vezes a mãe sai à tarde. Minha irmã mais velha cuida de mim, ou fico na casa de alguma vizinha. Ela vai ao centro bem no começo da tarde e só volta quando já tá quase escuro, ou escuro de verdade. Daí eu nem vejo a Sessão da Tarde, porque não tem a menor graça. Eu até gosto quando a mãe vai ao centro, porque ela sempre me traz um presente na volta.

7. A mãe me disse que eu não vou mais poder ver os filmes da Sessão da Tarde no colo dela. Fala uma coisa sobre uma operação na coluna, que eu descubro que são os ossos que a gente tem nas costas. Ela sente muita dor nas costas e vai operar. Enquanto ela estiver doente, a madrinha da minha irmã mais nova vai cuidar da gente.

8. A Dona Zoé é bem velhinha e bem braba. Quando a gente vai na casa dela, nunca pode mexer em nada porque ela não gosta. E ela gosta mais da minha irmã do que de mim, por isso que é madrinha dela. A Dona Zoé sabe fazer um monte de comidas boas.

9. Continuam me dizendo que eu não vou mais poder ficar no colo da mãe. Eu não sei o que vai acontecer direito, por que ela não vai poder me pegar no colo, nem quanto tempo vai demorar pra ela se operar.

10. A mãe foi pro hospital e a Dona Zoé veio para nossa casa. A mãe dormiu no hospital muitos dias, e demorou pra eu poder ir até o hospital para visitá-la. Eu me lembro de ir com o pai num dia, e que o hospital ficava no alto de uma lomba enorme. O pai não me levava no colo porque tinha hérnia, então eu tina que subir sozinho.

11. Não me lembrava de ter entrado num hospital antes. Um hospital era uma coisa enorme e muito cheia de gente. A mãe estava deitada e chegou a janta. Como ela não tinha fome, eu comi tudo. Gostei da comida do hospital. E gostei de ver a mãe.

12. Na hora de voltar pra casa, desci a lomba correndo. Eu, que não era muito rápido, fiquei apavorado com minha velocidade. Ia ser legal visitar a mãe no hospital: podia comer a comida dela e ainda correr muito rápido na volta.

13. Enquanto a mãe fica no hospital, o pai almoça com a gente. Antes ele vinha pouco, às vezes trazia um amigo pra almoçar junto. Mas agora ele vem mais vezes. O almoço em casa é movimentado. As gurias têm que comer rápido pra irem à escola. O pai também tem pressa pra chegar no trabalho. Depois do almoço, a casa fica só pra mim e pra Dona Zoé.

14. Tento ver Sessão da Tarde com Dona Zoé, mas não consigo me acomodar no colo dela como me acomodava no da mãe. E ela fica fazendo crochê o tempo todo, nem vê o filme. Que saudade da mãe.

15. A mãe vai voltar pra casa. Fico feliz, apesar de gostar de visitar a mãe no hospital. Alguém me explica que ela vai ter que voltar pra lá muitas vezes. Então eu vou ter que voltar lá também.

16. O pai chega em casa com a mãe. Ela virou robô. Usa uma coisa que vai do pescoço até embaixo da barriga; parece uma armadura. Ela não pode se mexer direito e tem que ficar deitada. Deitada o tempo todo.

17. Alguém me explica que a mãe teve que pôr uma barra de platina nas costas, e que aquilo que ela tá usando, e que parece uma roupa de robô, é um gesso. Ela vai usar esse gesso muito tempo, até ficar boa.

18. Agora a gente fica assim em casa. A mãe, a Dona Zoe e eu. A Dona Zoé faz tudo porque a mãe não pode fazer muita coisa. Ela não pode brincar comigo e nem pegar no colo. Mas ela é carinhosa.

19. Minha irmã mais velha ajuda muito na casa. Ela sabe fazer umas comidas, lava a louça, varre, arruma os quartos, ajuda a mãe. Eu fico com ciúme porque não sei fazer nada.

20. Minha irmã mais nova é um doce. Ela é boazinha e vive ganhando elogios porque vai bem na escola.

21. Minha irmã do meio apronta muito. Sai de casa, fica na casa dos vizinhos, volta tarde. O pai bate nela às vezes, e eu não entendo. Só tenho medo que ele machuque ela. Não queria que ele machucasse ela. Mas a gente é pequeno demais pra impedir que ele bata e também pra não deixar a nossa irmã fazer confusão.

22. A mãe volta para o hospital para trocar o gesso. Vai ficar uns três, quatro, cinco, sei lá quantos dias. Eu vou visitá-la.

23. Nunca tive dor de cabeça, mas acordei hoje com dor de cabeça. Vou até a cozinha onde a Dona Zoé está fazendo bolinhos de batata e digo o que estou sentindo. Ela não me dá remédio e me manda voltar pra cama. Eu durmo e, quando acordo, o pai e as minhas irmãs comeram todos os bolinhos de batata.

24. As gurias entram em férias. As férias são assim: a mãe, coitadinha, deitada no sofá e todos nós em volta dela. A mãe não conseguia levantar sozinha, sempre um de nós tinha que dar a mão pra ela. Mas nesse dia eu tossi e fiz uma brincadeira de continuar tossindo. A mãe se assustou e levantou muito rápido e sozinha do sofá. A gente riu, mas ela ficou triste comigo.

25. Ah, no ano que vem eu vou para escolinha que fica na praça na frente da nossa casa. Eu não queria, mas me disseram que ia ser bom. Acho que eu vou entrar no judô também.

26. O Natal era diferente lá em casa por causa do trabalho do pai. Nesse ano foi ainda mais, porque a mãe não podia ficar junto com a gente. Eu ganhei um brinquedo bem legal e a gente ficou jogando e ouvindo música no radião do pai até tarde. A mãe não podia ficar com a gente.

27. Por causa do gesso, a mãe não podia tomar banho como a gente. De vez em quando,
minha madrinha, minha vó, minhas primas e minhas irmãs iam para o quarto lavar o cabelo da mãe. Nunca entendi por que eu não podia ficar junto. Será que a mãe fica pelada?

28. Não me sinto mais como antes. Não gosto da Sessão da Tarde, não preciso da mãe por perto pra mais nada. Quando me perguntam se eu sou criança, respondo que sou adolescente. E todo mundo ri de mim. Mas eu acho que não sou mais criança mesmo.

29. Tô tão grande que já vou para a escola. Eu não gosto do que tem que fazer dentro da sala, só gosto de brincar na pracinha. O pior de tudo é que agora as minhas irmãs estudam de manhã e passam a tarde com a mãe. Hoje eu chorei no banheiro. Teve uns outros dias em que chorei também. Mas hoje eu não conseguia parar de chorar e me pegaram. Eu só queria ir pra casa e ficar com a minha mãe.

30. Não gostei de judô. Era só agarramento com outros guris. Pra piorar, um dia o pai apertou o meu pinto no fecho da calça depois da aula. Não vou mais.

31. A mãe continua indo para o hospital de vez em quando. Agora já acostumei. Tenho um colega que mora perto do hospital. Um dia desses eu tava de bicicleta lá perto, com o meu pai, e encontrei com ele. A bicicleta dele não tem mais rodinhas.

32. Tentei jogar futebol na escola, tropecei, caí e ralei o joelho. Chorei muito. Tava morrendo de saudade da minha mãe.

33. A minha irmã do meio continua fazendo confusões. Mas acho que o pai bate muito nela.

34. Um dia me disseram que a mãe ia tirar o gesso. Era a última vez que ela iria para o hospital. E ela foi para lá e passaram mais uns dias. Demorou mais do que nunca.

35. Hoje eu vou ficar na escola só até a hora da mãe chegar. Daí vão me buscar, me dar banho e a gente vai fazer uma festa. Tem refrigerante e salgadinhos em casa. Talvez os meus tios e os meus primos apareçam.

36. Já chorei um monte de vezes na escola, mas hoje eu podia ralar os dois joelhos que nem ia chorar. Só quero que venham me buscar de uma vez pra ver a mãe sem aquela roupa de robô.

37. Chego em casa e depois o pai chega com a mãe sem gesso. Eu não me lembrava mais de como ela era sem o gesso. Todo mundo tá feliz. A mãe disse que ficou um ano e um dia engessada. Eu não tinha nem ideia de que tinha passado tanto tempo.

38. A operação foi um fracasso.O médico da mãe usou uma técnica experimental que, anos mais tarde, foi abolida. Algumas pessoas entraram na justiça e ganharam indenizações por erro médico. A gente não. A gente só quis esquecer aquilo tudo.

Um comentário:

Flavia Coradini disse...

Amei esse. Muito bom. Escreve para crianças, vai. Kd o texto do Cícero?